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terça-feira, 28 de maio de 2013

DIÁRIO DE UM PEREGRINO

Noite à brasileira


23 de maio - 20º dia de caminhada

Meu dia sempre começa com o ritual dos curativos. É muito chato, perco um tempao com isso mas é necessário. Meus pés ganharam muitas bolhas e sem os curativos e chumaços de algodao, nao conseguiria caminhar. Fico observando algumas pessoas que apenas calçam as botas ou tênis sem curativos. Que inveja! Tudo bem! Cada um com os pés que tem.
A caminhada de hoje será curta, mas bem puxada. Já dei uma olhada no mapa e ví que tem muita ladeira. Pretendo chegar a Foncebadón, uma parada importante do caminho.
O caminho começa meio monótono. Uma trilha margeia  uma rodovia. (carreteira como chamam aqui). De novo o clima de poluiçao e barulho de carro que me deixa irritado. Sinto saudade dos ares das montanhas e dos bosques, mesmo atravessando íngremes ladeiras e trechos lamacentos. Prefiro esse terreno do que essa monotonia a beira do asfalto. 
Estou cansado mas bem animado. Engraçado como o corpo vai se adaptando bem a realidade. No começo era quase uma tortura. Tudo doia. Agora sinto um pouco de fadiga, mas nada de mais. A mochila já faz parte do meu corpo, de modo que quando tiro fico um instante me sentindo estranho, com o corpo meio desequilibrado.
Desde o dia 18 de maio vem acontecendo uma coisa estranha comigo. Pensei muito em nao compartilhar com vocês, pois é muito estranho. Sempre que fico sozinho no caminho tenho a impressao de que tem alguém me seguindo. Paro, olho e nao vejo ninguém. Tento esquecer. Sou meio cético para algumas coisas. Deve ser o cansaço, estresse, sei lá. Porém, de novo a sensaçao. Sigo por um tempo sem olhar para trás e deixo os passos se aproximar. Quando tenho certeza que a pessoa está bem próxima, olho de repente. Nada. Será que estou ficando louco? Penso. Começo a fazer alguns exercícios para testar minha sanidade. Faço contas de cabeça. Ok. Repito em voz alta nomes de familiares e amigos. Ok. Lembro dos nomes dos Estados e suas respectivas capitais. Ok. Nao. Nao estou ficando louco nem tampouco tendo lápso de memória. Quando encontro peregrinos fico aliviado, pois nao escuto maios os tais passos. Isso tem se tornado rotina nas minhas caminhadas sempre que fico só. Antes me afastava do grupo de peregrinos para andar sozinho, agora procuro sempre andar próximo. Para isso as vezes ando rápido, as vezes recuo os passos, dependendo do compasso de quem está no caminho. Nao sei se tenho medo, mas me incomoda a sensaçao de alguém me seguindo sem eu ver quem é.
Enfim, deixo a rodovia. Entro numa trilha pedregosa que atravessa uma plantaçao de cereais. Aqui é assim. Parece que eles plantam sobre as pedras. Faz muito frio e venta muito ao contrário. Nao sei porque mas ultimamente o vento só está soprando ao contrário e isso deixa a caminhada muito mais pesada. De longe avisto um monte de ruínas. Pelos meus cálculos logo chegarei a Foncebadón. As 15h e 40 minutos entro no povoado. Me recuso a acreditar que aquilo era Foncebadón, o povoado onde passaria a noite. Avisto uma placa de identificaçao logo na entrada. Nao resta dúvida: aquele monte de escombros e ruínas de pedras era mesmo o meu povoado onde passaria a noite. Parece uma cidade fantasma, daquelas que foi destruida pela guerra e os moradores fugiram há séculos. Os únicos sinais de viventes alí sao 02 ou 03 pousadas e algumas casas. O resto sao só ruínas e escombros que o tempo nao conseguiu apagar. É assustados e bonito ao mesmo tempo.
Me hospedo no primeiro albergue que encontro. Albergue Monte Irago. Muito simples mas bem
organizado. Logo na entrada tem um rapaz plantando flores num par de botas velhas. Fico observando e elogio a criatividade. Ele responde: Oh! Gracias. Uma boa idéia que vou copiar na Capitao Lamarca assim que chegar. Pronto. Já arrumei utilidade para minhas botas! Faço os procedimentos de hospedagem. Mostro passaporte, apresento credencial do peregrino para ser carimbada e subo para o alojamento. Nesse horário já tem gente roncando. Tomo um banho e desço para lanchar. Ao entrar no bar do albergue por coincidência está tocando a música dos Tribalistas - já sei namorar. O hospitaleiro ao me ver começa a dançar e diz eufórico: música brasiliana, Tribalistas, muy boa. Improvisa um portunhol. Esse hospitaleiro é uma figura. Veste uma calça daquelas que eu chamo calça de ca... em pé. Parece aqueles mágicos de circo de periferia.
Lancho e vou cochilar. As sete em ponto desço para jantar. O cheiro foi o melhor que já senti nesse Caminho. Na mesa está um taxo enorme com uma paella de dar água na boca. Todos vao se sentando e se apertando para caberem nas mesas. Uma americana que está na minha mesa se oferece para ajudar a servir.  Todos nos deliciamos com a paella e ensalada como eles falam aqui. O sabor é compatível com o cheiro. Após jantar e algumas taças de vinho para espantar o frio, resolvo subir para o alojamento. Até que os gringos da minha mesa tentaram conversar comigo mas a conversa nao fluiu. Já falei que vou fazer um curso de inglês assim que chegar? 
Tento dormir mas nao consigo. Um grupo animado no comedor (sala de jantar) insiste em ficar cantando. Pelo tom acho que sao italianos. A cada música parece que o coro vai aumentando. Estou muito cansado e tento pensar nos passos que vem me seguindo pelo caminho. Fico irritado com aquela cantoria. Será que o hospitaleiro nao vai por um fim nessa bagunça? Penso. Até aqui em todos os albergues que fiquei há a lei do silêncio. Após as 21 horas nao se pode dar um pio. Agora já sao 21 e 30 e nada de silêncio. De repente me envergonho daquele sentimento. Como pode? Logo eu que gosto de música ficar incomodado com cantoria? Me irritar com a felicidade do próximo? Algo muito errado! Muito errado! No meio dos meus pensamentos escuto um som familiar. Violao? Será? Nao só violao. Agora tinha um violao e um tambor acompanhando a cantoria. Pensei: já que nao vou conseguir dormir mesmo vou me juntar aos bons. Desço. Quando entro no salao o gringo que jantara em minha mesa me oferece uma garrafa de cerveja. Aceito e já me sinto parte da festa. Todos estavam uma animaçao só. Fiquei olhando, doido que alguém ali adivinhasse que eu toco violao. De repente, pimba! O violeiro que era um dos donos do albergue se lavanta e diz que já está cançado. A platéia protesta: ahhhhhh! Tomo coragem, pego o violao e começo com um carimbó. Bingo! A gringaiada se levanta e começa a dançar. Toquei várias cançoes brasileiras e me senti um pop star com tantos flashs. O mais emocionante foi quando cantei "está chegando a hora". Quem parte leva, saudade de alguém, que fica chorando de dor...No refrao foi bonito de se ver todos cantando, cada um em sua língua. Uma mistura sensacional!
Valeu a pena eu ter saido da cama. Toquei, cantei, toquei tambor. A meia noite em ponto, como se tivesse combinado o hospitaleiro tocou a última. Algo como "o albergue vai dormir". Todos nos despedimos e subimos para o alojamento. Foi uma noite e tanta. Acabou meu tédio e aliviou minha saudade.

7 comentários:

  1. Luiz, estou acompanhando seu blog diariamente e gostando muito das sua postagens do "diário do peregrino", me sinto a cada postagem mais motivado a fazer esse caminho um dia.
    Abraços, boa sorte!

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  2. Essa parte da cantoria foi linda,espero que ao longo da caminhada tenha mais momentos de descontração. Vc estava cansado e não cançado.Boa caminhada!

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    1. Olá anonimo(a) das 17:47. Obrigado pela correção. Devo ter cometido outros erros na pressa. Aqui é assim. Quando um albergue tem computador conectado fica uma fila. Com a pressa e o cansaço acabamos por assassinar a língua portuguesa.
      Um abraço e continue me prestigiando com sua participação.

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    2. Luiz, me lembro quando criança e ficava sozinho, às vezes tinha visões como enchergar vultos. Hoje, quando estamos só, em lugar desserto, tmbém temos esta impressão - de uma companhia invisível. Mas pense numa coisa: imagine que no caminho há armadilhas superinvisíveis; quando você sente a proximidade do seu parceiro invisível você pára para olhar pra trás; é o seu anjo da guarda que faz você parar - aquele passo seguinte poderia ser o precipício. Você se diz cético, mas em anjo da guarda você acredita né? Vá em frente, perca o medo e deixe que esta invisibilidade lhe faça companhia.

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  3. Suas histórias me emocionam e me enchem de orgulho por ser filha de alguém tão corajoso! A saudade está grande, assim como a alegria de poder acompanhar seu caminho! Lua.

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  4. olá Luiz,a cada postagem nos divertimos muito e sentimos que estamos caminhando e vivenciando contigo todas as conquistas.Desejamos mais uma vez perserverança e paz em sua trajetória.um forte abraço e até breve.Viviane e Valamiel

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  5. Nossa! Luiz quando vi o tema(Diário de um peregrino), fiquei muito curiosa corri e perguntei pra Edite, ela só me falou partes ai ñ aguentei e comecei a acompanhar. Estou gostando muito tá peregrinando com vc, aqui no blog claro. tá muito bom, tanto que hoje li o relato do dia 23 e como sei que é até dia 30, ah.... estou sentindo falta. ah quando a Edite começou a me contar, mencionei a ela um filme. um bom filme. vou ficar no aguardo. boa Sorte
    Kasiany

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