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sexta-feira, 31 de maio de 2013

ASSASSINATO NO CAMINHO DE SANTIAGO

Sempre que chego a um albergue que tem computador com internet, corro para escrever algo para o Blog. A cabeça está fervilhando de idéias. Quero registrar tudo com a maior fidelidade. Aí começa o problema. Esse lado da Espanha que estou caminhando tem povoados muito rudimentares. Quanto tem um computador com internet logo se forma aquela fila. Quase todos querem usar. Geralmente é daqueles conectado a uma máquina onde você coloca uma moeda de 1 euro e lhe dá o direito a usar 20 minutos. Basta você tirar mais 1 euro do bolso para o pessoal da fila te olhar com cara feia. Também nao é bom abusar.
Aí já viu né? Temos que correr e dar conta de digitar tudo em 20 minutos enquanto o cronômetro vai correndo regressivamente. Na pressa, inevitavelmente ocorrerá o açascinato da língua portuguesa. Mas vai assim mesmo, sem correçao, sem ediçao. E vou deixar tudo como está. Depois com o tempo vou dar boas risadas.

DIÁRIO DE UM PEREGRINO

Ana, uma mulher encantadora cruza o meu caminho

 

24 de maio - 21ª dia de caminhada

Deixei a cidade fantasma de Foncebadón as 7h e 45m. Depois da cantoria da noite passada, dormi um pouco mais. Estou muito animado para enfrentar meu 21º dia de caminhada. Cada vez que se aproxima do final vai dando aquela euforia, aquela sensaçao de vitória, aquela vontade de chegar. Hoje o caminho é especial. Enfim, vou conhecer a legendária Cruz de Ferro. Há uns cinco dias só escuto falar na tal cruz nos albergues onde me hospedo. Parece que o objetivo maior dos peregrinos é a  cruz, e nao Santiago de Compostela. Fico imaginando como será essa cruz. Na minha cabeça vem a imagem de um monumento gigantesco. Uma enorme cruz de ferro com uns 30 metros de altura próxima a uma monumental igreja. Ao seu redor visualizo todo tipo de arte sacra e artesanatos representando a passagem dos peregrinos.
Com essa curiosidade vou caminhando animado a passos largos ladeira acima. O caminho é hostil. Um dos mais difíceis do percurso. Subiremos a uma altitude de 1504 metros para depois despencarmos para 541 metros em Ponferrada. Como estou bem disposto e motivado, caminho bem, ignorando as pedras e os enormes abismos que se formam entre as montanhas. Só uma tontura me incomoda um pouco mas nao me preocupa mais. Um médico que encontrei no albergue há uns três dias atrás me falou que é normal. É o efeito colateral da altitude.
Enfim chego a tal Cruz de Ferro após uma subida que parecia nao ter fim. Nao é nada do que imaginei. O famoso monumento nao passa de um enorme mastro de madeira com uns 6 metros de altura fincado numa montanha de pedras com uns 30 metros de diâmetro com uma pequena cruz de ferro na ponta. Consta na placa ao lado que nao há confirmaçao do periodo que foi colocada lá, mas sabe-se que foi deixada pelos romanos na época da sua colonizaçao. Subo no monte de pedras para apreciá-la de perto. No mastro há todo tipo de objetos e lembranças amarradas ou pregadas. Tinha até uma bandeirinha do Brasil junta com a do Pará. Observo cada objeto alí, leio as frases escritas e fico imaginando o que cada um pensou ao passar por alí.
A Cruz de Ferro está alí, no meio do nada, numa paisagem deserta. Nao tem uma pracinha, bancos, uma igrejinha, nada. Somente a Cruz que mal conseguimos enxergar na ponta do mastro de madeira. Noto que há uma energia diferente alí. Vejo as pessoas olhando como se estivessem hipinotizadas. Alguns contemplam em silêncio, outros tiram fotos, outros se ajoelham e rezam. Todos, absolutamente todos demonstram total respeito por aquelo símbolo. Nao vi alí a algazarra rotineita dos peregrinos quando se encontram em grupos. Sinto uma alegria imensa em poder estar aqui nesse monumento tao simples e tao carregado de boas energias. Instintivamente tiro meu lenço do bolso, escrevo "LUIZ VIEIRA, PARAUAPEBAS, PARÁ, BRASIL. 24/05/13"  e coloco no mastro junto com os demais objetos. Sinto que estou eternizando minha passagem por ali e ao mesmo tempo descarregando toda a energia negativa. Meu corpo está leve e tenho vontade de rezar. Assim o faço por alguns minutos.
Hora de seguir em frente. Tem muito chao até Ponferrada. Hoje tem poucos peregrinos no caminho. Muitos fazem essa etapa em duas vezes devido a dificuldade do percurso. Aumento o passo para ganhar tempo e aproveitar que estou me sentindo leve. Hoje até ousei a reduzir os curativos, pois as bolhas estao quase curadas. Depois de uns 50 minutos de caminhada após a Cruz de Ferro eis que escuto os passos que há alguns dias vem me seguindo sem que eu veja quem é. Falei disso anteriormente, lembra? Tinha certeza que estava sozinho naquele momento pois os poucos peregrinos ficaram para trás há um tempao. Decido que nao vou olhar para trás para ver no que vai dar. Caminho mais depressa, quase corro. Os passos foram se aproximando mais e mais até que vi uma sombra. Paro de repente e fico aliviado quando vejo que era uma pessoa. Olá! Tudo bem? Olá. Respondo meio nervoso. Posso lhe acompanhar um pouco? Pergunta. Si, sí, gracias. Respondo em espanhol meio encabulado. Como se lhamas? Ela me fala seu nome mas é muito difícil, um nome meio oriental, sei lá. O som do final se parece com Ana. Perdón, no entiende. Ela repete mais uma vez e continuo sem entender. É muy difícil. Posso lhamar de Ana? Pergunto. Claro! Ana é um nome muito bonito. Só aí me dou conta do ridículo. A senhora estava falando comigo num claro português e eu nem percebo. Fico me esforçando para falar em espanhol. Ah, você é brasileira? Pergunto entusiasmado. Nao. Nao sou. Olho para ela por um instante para tentar adivinhar sua nacionalidade. Era uma mulher alta, mais ou menos 1,75 de altura. Tinha a pele branca meio bronzeada, cabelos negros amarrados tipo rabo de cavalo. Uma silhueta esguia, rosto fino e aparentemente nao tinha rugas. Poderia ter tanto 40 ou 50 anos. Olhando assim nao dava para imaginar. Nao se parecia com uma peregrina, ou pelo menos nao se vestia como uma. Nao carregava mochila nem cajado. Vestia uma saia comprida que nem me lembro a cor, e um blusao bege se nao me engano. Uma mulher sem dúvida muito bonita e jovial, mas uma beleza diferente. Tinha um sorriso aberto e algo de maternal. Fiquei intrigado e ao mesmo tempo gostei de sua presença. Seria uma boa companhia para a caminhada do dia.
Apesar de tê-la observado para ver se adivinhava a nacionalidade daquela mulher estranha que falava tao bem o português, nada me veio a cabeça. Lembrei de um alemao que encontrei no albergue de San Jean Pied que falava o português tao bem que facilmente se passaria por um catarinense. Se você nao é brasileira, de onde...Quando tentei perguntar fui interrompido por uma observaçao de Ana. Você está andando errado. Disse sorrindo. Como? Venho seguindo as setas amarelas. Respondo preocupado. Nao, nao estou falando do caminho, mas o jeito que você está andando. Ah sim. Respondo aliviado. Como é que se anda entao? Ela me pede que eu tire a mochila das costas e lhe entregue. Fico com um pouco de receio e penso na possibilidade de estar sendo enganado. Ela me olha com uma expressao de reprovaçao como se estivesse adivinhando meus pensamentos. Bobagem. Com a cara que fiz, nao é preciso ser adivinho para saber que estava com medo. Tiro a mochila das costas e entrego-a. Uau! O que voce carrega aqui, é pedra? Pergunta sorrindo. Nao. É comida. É que passei fome na caminhada de ontem. Respondi meio envergonhado. Nao se preocupe em carregar comida. Você nao vai mais passar fome. Falou com autoridade. Como sabe disso? Pergunto. É que daqui até Santiago tem muitos povoados. Nao é tao deserto como o trecho anterior.
Ana coloca minha mochila nas costas, toma meu cajado e começa a andar na minha frente meio corcunda, desengonçada e espalhafatosa. Acho engraçado e sorrio. Ah, você está achando graça? Pois venho lhe observando e é exatamente assim que você está andando. Eu? Perguntei meio encabulado. Você está andando como se estivesse procurando uma moeda no chao e está batendo com o seu cajado como se estivesse com raiva das pedras. Assim você gasta muita energia e vai chegar arrasado em Santíago. Fico intrigado com aquela observaçao. Era exatamente assim que eu estava andando. Havia ganhado um hábito de ficar batendo meu cajado nas pedras. Era uma coisa fora do controle. Quando percebia lá estava eu golpeando as coitadas. Meu cajado já estava todo gasto e já havia soltado uma parte.
Agora observe que vou lhe mostrar como se caminha. Primeiro você tem que olhar para o horizonte. O que você busca nao está no chao. Está lá na frente. Falou apontando com o cajado. E o cajado, é como se fosse uma terceira perna. Se você segura com a mao esquerda, ele deve acompanhar a perna direita ou vice-versa. Ande com passos mais curtos e rápidos. Nao estique muito as pernas. Curto e rápido. E olhe a respiraçao! Enquanto passava as instruçoes Ana andava com uma leveza que parecia flutuar. Fiz um grande esforço para imitá-la e senti a grande diferença. Depois de alguns minutos ela me devolveu a mochila e o cajado e disse: vamos lá. Quero ver se aprendeu. Começei a caminhar com a coluna reta, passos curtos e olhando para frente. Isso! Sente a diferença? Lembre-se: olhe sempre para o horizonte. Caramba, e nao é que funciona? Como é que nao aprendi isso antes? Cada coisa ao seu tempo. Setenciou Ana sorrindo.
Continuamos a caminhar por horas. Conversamos sobre um monte de coisas: filosofia, religiao, política, crise econômica espanhola, família. Ana é uma mulher incrível! Parece ser jovem mas fala com autoridade e sabedoria de quem já viveu muito. Decido tratá-la somente por senhora, dado o grau de sua experiência. Qualquer dia vou escrever sobre o que conversamos. Tomo coragem e peço para tirar uma foto para levar de lembrança para o Brasil. Ela diz: nao, nao. Foto nao! Guarde as lembranças aqui ó. Fala tocando com os dois dedos em minha testa. Nao insisto. Lembrei do meu pai -seu Terêncio. Há alguns anos atrás nao tinha quem fizesse ele tirar uma foto, e ninguém se atrevia a tirar na surdina. Hoje ele está moderno. Faz até pose para a câmera.
Desculpe, mas a senhora ainda nao me falou de onde é. Mais uma vez fui interrompido. Foi um grande prazer lhe conhecer Luiz Vieira. Gostei muito da sua companhia. E lembre-se: olhe sempre para o horizonte. E nao seja tao perfeccionista. Ísso afasta as pessoas de você. Exercite mais sua tolerância. Já? Mais para onde a senhora está indo? Esse é o meu caminho. Falou apontando para uma estradinha a esquerda antes de Ponferrada. Me deu um abraço afetuoso e tomou o caminho a esquerda. Fiquei alí parado observando-a para ver se nao ia virar uma nuvem e desaparecer. Que ridículo! Caminhou até sair do meu campo de visao numa curva da estrada.

terça-feira, 28 de maio de 2013

DIÁRIO DE UM PEREGRINO

Noite à brasileira


23 de maio - 20º dia de caminhada

Meu dia sempre começa com o ritual dos curativos. É muito chato, perco um tempao com isso mas é necessário. Meus pés ganharam muitas bolhas e sem os curativos e chumaços de algodao, nao conseguiria caminhar. Fico observando algumas pessoas que apenas calçam as botas ou tênis sem curativos. Que inveja! Tudo bem! Cada um com os pés que tem.
A caminhada de hoje será curta, mas bem puxada. Já dei uma olhada no mapa e ví que tem muita ladeira. Pretendo chegar a Foncebadón, uma parada importante do caminho.
O caminho começa meio monótono. Uma trilha margeia  uma rodovia. (carreteira como chamam aqui). De novo o clima de poluiçao e barulho de carro que me deixa irritado. Sinto saudade dos ares das montanhas e dos bosques, mesmo atravessando íngremes ladeiras e trechos lamacentos. Prefiro esse terreno do que essa monotonia a beira do asfalto. 
Estou cansado mas bem animado. Engraçado como o corpo vai se adaptando bem a realidade. No começo era quase uma tortura. Tudo doia. Agora sinto um pouco de fadiga, mas nada de mais. A mochila já faz parte do meu corpo, de modo que quando tiro fico um instante me sentindo estranho, com o corpo meio desequilibrado.
Desde o dia 18 de maio vem acontecendo uma coisa estranha comigo. Pensei muito em nao compartilhar com vocês, pois é muito estranho. Sempre que fico sozinho no caminho tenho a impressao de que tem alguém me seguindo. Paro, olho e nao vejo ninguém. Tento esquecer. Sou meio cético para algumas coisas. Deve ser o cansaço, estresse, sei lá. Porém, de novo a sensaçao. Sigo por um tempo sem olhar para trás e deixo os passos se aproximar. Quando tenho certeza que a pessoa está bem próxima, olho de repente. Nada. Será que estou ficando louco? Penso. Começo a fazer alguns exercícios para testar minha sanidade. Faço contas de cabeça. Ok. Repito em voz alta nomes de familiares e amigos. Ok. Lembro dos nomes dos Estados e suas respectivas capitais. Ok. Nao. Nao estou ficando louco nem tampouco tendo lápso de memória. Quando encontro peregrinos fico aliviado, pois nao escuto maios os tais passos. Isso tem se tornado rotina nas minhas caminhadas sempre que fico só. Antes me afastava do grupo de peregrinos para andar sozinho, agora procuro sempre andar próximo. Para isso as vezes ando rápido, as vezes recuo os passos, dependendo do compasso de quem está no caminho. Nao sei se tenho medo, mas me incomoda a sensaçao de alguém me seguindo sem eu ver quem é.
Enfim, deixo a rodovia. Entro numa trilha pedregosa que atravessa uma plantaçao de cereais. Aqui é assim. Parece que eles plantam sobre as pedras. Faz muito frio e venta muito ao contrário. Nao sei porque mas ultimamente o vento só está soprando ao contrário e isso deixa a caminhada muito mais pesada. De longe avisto um monte de ruínas. Pelos meus cálculos logo chegarei a Foncebadón. As 15h e 40 minutos entro no povoado. Me recuso a acreditar que aquilo era Foncebadón, o povoado onde passaria a noite. Avisto uma placa de identificaçao logo na entrada. Nao resta dúvida: aquele monte de escombros e ruínas de pedras era mesmo o meu povoado onde passaria a noite. Parece uma cidade fantasma, daquelas que foi destruida pela guerra e os moradores fugiram há séculos. Os únicos sinais de viventes alí sao 02 ou 03 pousadas e algumas casas. O resto sao só ruínas e escombros que o tempo nao conseguiu apagar. É assustados e bonito ao mesmo tempo.
Me hospedo no primeiro albergue que encontro. Albergue Monte Irago. Muito simples mas bem
organizado. Logo na entrada tem um rapaz plantando flores num par de botas velhas. Fico observando e elogio a criatividade. Ele responde: Oh! Gracias. Uma boa idéia que vou copiar na Capitao Lamarca assim que chegar. Pronto. Já arrumei utilidade para minhas botas! Faço os procedimentos de hospedagem. Mostro passaporte, apresento credencial do peregrino para ser carimbada e subo para o alojamento. Nesse horário já tem gente roncando. Tomo um banho e desço para lanchar. Ao entrar no bar do albergue por coincidência está tocando a música dos Tribalistas - já sei namorar. O hospitaleiro ao me ver começa a dançar e diz eufórico: música brasiliana, Tribalistas, muy boa. Improvisa um portunhol. Esse hospitaleiro é uma figura. Veste uma calça daquelas que eu chamo calça de ca... em pé. Parece aqueles mágicos de circo de periferia.
Lancho e vou cochilar. As sete em ponto desço para jantar. O cheiro foi o melhor que já senti nesse Caminho. Na mesa está um taxo enorme com uma paella de dar água na boca. Todos vao se sentando e se apertando para caberem nas mesas. Uma americana que está na minha mesa se oferece para ajudar a servir.  Todos nos deliciamos com a paella e ensalada como eles falam aqui. O sabor é compatível com o cheiro. Após jantar e algumas taças de vinho para espantar o frio, resolvo subir para o alojamento. Até que os gringos da minha mesa tentaram conversar comigo mas a conversa nao fluiu. Já falei que vou fazer um curso de inglês assim que chegar? 
Tento dormir mas nao consigo. Um grupo animado no comedor (sala de jantar) insiste em ficar cantando. Pelo tom acho que sao italianos. A cada música parece que o coro vai aumentando. Estou muito cansado e tento pensar nos passos que vem me seguindo pelo caminho. Fico irritado com aquela cantoria. Será que o hospitaleiro nao vai por um fim nessa bagunça? Penso. Até aqui em todos os albergues que fiquei há a lei do silêncio. Após as 21 horas nao se pode dar um pio. Agora já sao 21 e 30 e nada de silêncio. De repente me envergonho daquele sentimento. Como pode? Logo eu que gosto de música ficar incomodado com cantoria? Me irritar com a felicidade do próximo? Algo muito errado! Muito errado! No meio dos meus pensamentos escuto um som familiar. Violao? Será? Nao só violao. Agora tinha um violao e um tambor acompanhando a cantoria. Pensei: já que nao vou conseguir dormir mesmo vou me juntar aos bons. Desço. Quando entro no salao o gringo que jantara em minha mesa me oferece uma garrafa de cerveja. Aceito e já me sinto parte da festa. Todos estavam uma animaçao só. Fiquei olhando, doido que alguém ali adivinhasse que eu toco violao. De repente, pimba! O violeiro que era um dos donos do albergue se lavanta e diz que já está cançado. A platéia protesta: ahhhhhh! Tomo coragem, pego o violao e começo com um carimbó. Bingo! A gringaiada se levanta e começa a dançar. Toquei várias cançoes brasileiras e me senti um pop star com tantos flashs. O mais emocionante foi quando cantei "está chegando a hora". Quem parte leva, saudade de alguém, que fica chorando de dor...No refrao foi bonito de se ver todos cantando, cada um em sua língua. Uma mistura sensacional!
Valeu a pena eu ter saido da cama. Toquei, cantei, toquei tambor. A meia noite em ponto, como se tivesse combinado o hospitaleiro tocou a última. Algo como "o albergue vai dormir". Todos nos despedimos e subimos para o alojamento. Foi uma noite e tanta. Acabou meu tédio e aliviou minha saudade.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

DIÁRIO DE UM PEREGRINO

Caminho de Santiago também é cultura



Percorrer o Caminho de Santiago é uma verdadeira aula de História sobre a Idade Média. Cidades, construções, monumentos estão aqui desafiadoramente mantidas de pés após séculos. Se apresentam como testemunhas vivas de uma época de glória e esplendor, mas também de guerras, miséria e grandes desafios da humanidade. Tem para todo gosto, desde cidadezinhas pacatas que parecem terem saidas de um filme antigo até as mais modernas e agitadas.
A religiosidade do povo europeu nesse período está representada pelas inúmeras igrejas. São muitas.
 Em qualquer povoado que se entra encontramos sempre mais de uma, desde a mais simples construida com blocos de pedras, até suntuosas catedrais que marcam um período de aliança entre reis e clero. Essa religiosidade por aqui parece ter ficado no passado. Assisti a duas missas: uma na catedral de Leon e outra na catedral de Astorgas. Ambas quase vazias frequentadas em sua maioria por idosos. Isso demonstra a crise que a religião, especialmente a Católica está atravessando nesse momento. Num período recente esses templos eram lotados e disputados. Hoje estão vazios, servindo mais como museus.
Real Monastério de Sta. Clara
Ao passar pela cidade de Carrión de los Condes, tive o privilégio de me hospedar no Real Monastério de Santa Clara construido em 1255. Hoje ele abriga um museu e um albergue para peregrinos. Segundo o hospitaleiro que me atendeu, São Francisco de Assis se hospedou alí no século XIII quando fazia a peregrinação à Santiago. Como não tinha mais vaga no quarto coletivo que custava 9 euros, dormi num apartamento que já serviu de clauzura para monges. Me senti dormindo com a História.
Palácio de Gaudí
As catedrais mais importantes que visitei até agora foram as de Burgos, León e a de Astorga. Todas são verdadeiros monumentos da arquitetura gótica dos séculos XI e XII. Passaram por complexo processo de restauração e estão intactas. Um luxo e privilégio para os olhos. Também em Astorga está o imponente palácio de Gaudi construido no século XIX e hoje está aberto para a visitação pública. Para quem aprecia arte sacra, aqui está um tesouro inestimado.
Astorga é uma cidade que mistura o antigo com o moderno. Parada obrigatória dos peregrinos para um banho de cultura e apreciação da riquissima gastronomia com destaque para o chocolate e o cozido maragato.
E aí? Criou coragem para fazer o Caminho de Santiago ou vai ficar fazendo só virtualmente no meu diário?
 

terça-feira, 21 de maio de 2013

DIÁRIO DE UM PEREGRINO

ÉTICA DO PEREGRINO


Uma coisa impressionante aqui no Caminho de Santiago é o comportamento dos peregrinos. Gente de toda parte do mundo, de todas as culturas, classes sociais, idades e religiões se mistura aqui e segue um comportamento padrão como se estivesse escrito num manual. Há um respeito, consideração e proteção ao próximo que é bonito de se ver. Não se ouve falar no caminho de casos de roubos, brigas, assédios, ou qualquer confusão. E olha que o ambiente seria propício para isso, pois você está numa trilha no meio do nada e em algum momento você fica só. Imagine se algum marginal troca as setas de sinalização e te desvia para uma armadilha? Fiquei pensando nisso e acho que daria um ótimo filme de suspense. Mas isso não acontece. Todos andam com confiança. Apesar de muita gente transitar no caminho, a maioria segue só. Raramente se vê grupos ou famílias. Os pequenos grupos vão se formando ao longo da caminhada, mas todos seguem no seu rítimo. Quando um peregrino passa por outro sempre deseja bom caminho em espanhol. É a tradição aqui. Quando atravessamos as cidades é comum também os moradores desejarem bom caminho. Todos, absolutamente todos respeitam os peregrinos e ajudam no que for necessário.
Apesar das várias línguas, todos se entendem, principalmente na hora de ajudar alguém. Eu estava num albergue com uma bolha enorme na parte superior do pé direito próximo ao dedão. Fui para o banho mancando muito e arrastando a havaiana, pois o cabeçote da sandália pegava bem em cima da bolha. Uma senhora ficou me olhando e quando voltei do banho lá estava ela no corredor com uma sacola na mão. Me abordou e me ofereceu material para curativo e uma gaze com pomada. Aquilo foi a minha salvação. Na próxima cidade procurei uma farmácia e comprei material de curativo, pois só tinha band-aid e não estava adiantando nada. Em outra ocasião eu estava lanchando num bar a beira do caminho. Comia uma linguiça frita que aqui eles chamam de chouriço. Uma senhora que me pareceu ser americana apontou para o meu prato e falou alguma coisa. Imaginei que ela estivesse perguntando o nome da comida. Respondi: chouriço. Ela chamou o garçom e pediu: um sorriso e uma coca. O garçom compreendeu imediatamente e trouxe a linguiça frita. E assim são vários casos que presenciei. Aqui é assim. Você vê alguém precisando de ajuda e logo se oferece. Quando alguém solicita a sua você faz com prazer. Ninguém se sente só nem desamparado mesmo sendo tímido como eu.
Outra coisa que reparei é que não se vê lixo no caminho, salvo em raras excessões. O que se vê é peregrino carregando sacola com lixo pendurada na mochila aguardando o próximo coletor. Todos tem o máximo de cuidado e zelo pelo caminho. Há um respeito que beira ao transcedental. E por falar nisso, aqui na Espanha em todas as cidades e povoados por onde passei vi lixeiras destinadas a coleta seletiva. Isso é regra por aqui.
Nos albergues reinam a paz e tranquilidade. E olha que teria tudo para ser um caos. Um monte de gente de costumes diferentes dividindo o mesmo espaço que sempre está lotado. Os quartos e banheiros são mistos. Somente em alguns eu vi banheiros masculino e feminino. Todos colaboram. Não se vê alguém abusando da ducha enquanto outro espera. No início eu achei meio estranho esse negócio de dividir o mesmo quarto e usar banheiros mistos. Agora já estou acostumado que até troco de roupa sem problema. No refeitório as mesas são comuns e cada um vai ocupando o seu lugar. É como se fossemos velhos conhecidos e o jantar se torna uma celebração gostosa. Dentro do dormitório reina o silêncio absoluto. Todos já preparam sua mochila de véspera para ninguém incomodar os que querem ficar dormindo um pouco mais.
Um dia você tem que fazer o Caminho de Santiago. Tenho certeza que será um aprendizado que vai levar para o resto de sua vida!

segunda-feira, 20 de maio de 2013

DIÁRIO DE UM PEREGRINO

Lembranças políticas no Caminho


16 de maio. 13º dia de caminhada.


Enquanto lavo o rosto dou uma olhada no espelho e nao gosto nada do que vejo. Estou magro e com uma barba quase toda branca. "Você é muito bonito brasileiro". Bonito uma ova. Estou com cara de Sao Francisco. (Nao querendo comparar a santidade claro!)
Saio bem cedo para aproveitar melhor a primeira etapa do dia. Acordei bem e disposto. 13º dia. Quem diria? Engraçado como o corpo vai se adaptando! No começo quando chegava no albergue todo em frangalhos, jurava que nao daria conta de caminhar no dia seguinte. No outro dia, lá estava eu, refeito e pronto para mais um dia. Parece que o Caminho de Santiago tem essa magia. Você tem vontade de seguir em frente. Quando chegamos no final de uma etapa é como se tivéssemos concluindo uma maratona e alcançado o 1º lugar. Se tivéssemos condiçoes físicas pularíamos de alegria. Geralmente todos jantam juntos no albergue. Nao vemos ninguém triste. Apesar de estarem todos cansados, o astral é muito bom. Todos se confraternizam. O bate-papo rola solto, talvez motivado pelo vinho, e mesmo em múltiplas línguas todos nos entendemos. Coisas de Santiago.
Hoje o caminho nao tem muita novidade. Dessa vez nao tem muita ladeira e nem tantas pedras. Passo pelas ruínas de San Antonio, um lugar muito bonito e místico. Por um bom percusso ando numa trilha paralela a rodovia N-120. Muito barulhenta, intenso movimento de caminhoes e cheiro de monóxido de carbono. Num povoado paro e compro um par de luvas que ajudam muito. O frio é tao intenso que os dedos quase congelam.
Numa encruzilhada do caminho tem um senhor vendendo lanche. Compro um pao com jamon (uma espécie de presunto) e uma coca. O pao está muito duro e o jamon tem gosto de carne velha. Como só a metade e completo o almoço com uma banana e uma laranja. De repente sinto minha mao direita muito fria. Olho e percebo que perdi a luva. Deve ser quando tirei da mao para fotografar a paisagem. O vendedor me ofereceu uma luva que alguém tinha deixado. Muito pequena. De repente surge um senhor e me vendo só com uma mao coberta me mostra a outra luva que ele achou no caminho. Por coincidência era um brasileiro do Rio Grande do Sul. Eis minha luva de volta para felicidade de minha mao direita.
Às 15 horas chego em Boadilla. O 1º albergue estava lotado. O 2º só tinha colchao no chao. Dessa vez topei. Nao queria correr o risco. A entrada do albergue dá até medo. Um portao velho de madeira e uma placa velha mal pintada com o nome do albergue que nem me lembro. Por dentro o lugar é encantador. Um jardim muito bonito e a decoraçao com motivos medievais. Um rapaz vendo meu chapéu com a bandeira do Brasil se apresenta como Dudú, um dos donos do albergue. Fala português e diz que conhece bem o Brasil. Lembra bem de Belém e da tapioquinha que comeu em Salinas. Agora me deu água na boca.
Apesar da pousada ser bonita, o serviço é pessimo. Uma bagunça geral. 
Tomo um banho e me sinto renovado e disposto. Antes de jantar resolvo escrever no meu diário. "Querido diário..." Êpa! Que história de querido diário é essa? Nem na minha adolescência tinha disso. "Prezado caderno..." Também nao. Tá muito afrescalhado. O que está acontecendo? O cérebro está batendo pino. Será que foi o excesso de monóxido de carbono que respirei na N-120? Mas vamos direto ao ponto:
Hoje no caminho meus pensamentos foram invadidos por política. Tentei várias vezes me esquivar mas nao teve jeito. Contava até 100 e lá estava eu novamente pensando em política. Deve ser pelo numero 13. Hoje 13º dia de caminhada e eu pensando no PT. Lembrei quando cheguei em Parauapebas, em 1987. Nossa cidade era apenas uma pequena vila de Marabá. Quando cheguei fui logo procurando algum simpatizante do PT. Naquele tempo era assim. Éramos uma irmandade, uma confraria de loucos e sonhadores. Em Marabá já havia participado de algumas reunioes de fundaçao do PT, entao já cheguei em Parauapebas com alguma experiência. Encontrei a Dona Carmelita, militante social da Igreja Católica. Uma velhinha porreta que eu já gostei de cara. Conheci outras pessoas como seu Artur, Barbudo, seu Jaime, Odílio e outros nomes de corajosos guerreiros. Naquele tempo eu era muito jovem, idealista e sonhava em participar de uma revoluçao socialista. Ser petista naquele tempo requeria muita coragem. Hoje é moda. Queria ver na década de 80, 90 onde éramos apontados como subversivos, loucos, baderneiros, terroristas e outros adjetivos. Lula era a grande besta-fera que comia criancinhas, que queria acabar com as igrejas, tomar as propriedades dos brasileiros e mudar a bandeira do Brasil. Assim a elite fazia os mais desavisados acreditarem.
Era barra pesada se assumir como petista, mas era muito bom. Éramos irmaos que compatilhávamos os mais nobres sentimentos. Nos sentíamos amparados e protegidos. Lembro bem da primeira campanha para prefeito. Dona Carmelita candidata a prefeita e Pimenta a vice. Era muito hilário. Nosso palco era um caminhao madereiro velho de um companheiro que nem tinha o lastro da carroceria. Improvisamos umas tábuas para ninguém pisar no eixo. Os comícios eram bem animados. Uma platéia de uns 20 militantes e outros curiosos que paravam para olhar aquela cena exótica. Microfone? Que nada. Era no grito mesmo. Fazíamos de tudo para chamar a atençao do povo. Eu com meu violao tocava o hino da Internacional Comunista e o hino do Movimento de Libertaçao da Nicarágua (em espanhol - nao sei como, mas cantava em espanhol). Só sei que a platéia gostava e até aplaudia. Tinhamos consciência que nao ganharíamos nada, mas o importante era deixar nossa mensagem de uma nova sociedade. Sabíamos que nossa vez iria chegar.
Como era bom ser petista naquele tempo. De tanto tentar chegamos ao poder. Primeiro com Lula em Brasília e depois com Darci aqui em Parauapebas. 
Paro para admirar as ruínas de San Antonio e tiro uma foto. Lugar de muita história. Fico imaginando o que já deve ter acontecido naquele lugar. Tento desviar meus pensamentos mais uma vez e sem perceber estou pensando no ano 2000. Com o sucesso do governo Lula vimos a possibilidade de governar Parauapebas em 2008. Começamos a traçar a estratégia. O Diretório escolheu por unanimidade o meu nome para ser o candidato a prefeito. A estratégia era a seguinte: disputaríamos as eleiçoes de 2000 para prefeito, 2002 para deputado, 2004 para prefeito novamente para em 2008 vir com tudo para vencer. Sabe quem foi o principal articulador do meu nome? Ele mesmo. O ex-prefeito Darci. Depois de muito debate convenci a todos que meu nome nao seria ideal para a nossa estratégia. Eu nao tinha carisma, nao tinha o traquejo para uma campanha e nao sabia ser popular. Defendi que o nome ideal para ganhar a eleiçao seria o do Darci. Esse sim, era do tipo que saia para comprar carne para o almoço e se perdia em bate papo com as pessoas na rua e chegava em casa a noite sem a carne.
Enfim, nossa estratégia alcançou a vitória antes do planejado. Em 2004 o PT venceu a eleiçao para prefeito numa disputa apaixonante que talvez nao vejamos outra em 100 anos. Chegamos ao poder e agora? Aí já é outra história. Já estou ocupando demais meu diário com história política quando o objetivo aqui é outro.
Naquele tempo era muito bom ser PT. Ah que saudade! 

DIÁRIO DE UM PEREGRINO

TARTARUGAS MANCAS


15 de maio - 12º dia de caminhada

Hoje tem 15 dias que estou fora de casa. Já estou caminhando há 12 dias. Sinto muita saudade de casa e estou um pouco desanimado. Lembro de quando saí de San Jean Pied-do-Port cheio de expectativa e ansiedade sobre o caminho. Acho que tinha uma visao mais romântica do que real. Imaginei grupos de jovens animados, acampamentos com fogueira pelo caminho, rituais de peregrinos, etc. Até agora nao ví nada disso, e nesse período os peregrinos acima de 40 anos predominam. Muitos, muitos idosos. Acho que eles vao caminhando pedaços do caminho e pegando conduçao em outros. Geralmente nos albergues sao os mais animados.
Já sao 16h e 40 minutos. Estou chegando numa cidadezinha chamada Montanas. Hoje o trecho foi muito hostil. Muita subida íngreme em meio a pedras. Passei por uma reserva militar toda cercada com rolos de arames farpado que combinavam bem com o estilo do caminho. De vez em quando escutava explosoes que nao sei se vinha da reserva militar ou de alguma mina. Era assustador. 
Na entrada da cidade paro um instante e fico observando os peregrinos passarem. Estao arrasados e andando de um jeito engraçado. Com enormes mochilas nas costas com capas de chuva de toda cor, andam meio corcundas e mancando. Parecem tartarugas mancas coloridas. Fico pensando: será que sao aleijados? Por que andam assim? Sorrio. Percebo que estou andando igualzinho a eles. Faço parte desse exército de tartarugas mancas que estao aventurando pelo Caminho de Santiago.
Entro no primeiro albergue que encontro e pergunto se tem uma cama. Geralmente nesse horário estao todos lotados. Uma moça branca, alta e magricela me fala num espanhol apressado que só tem no solo. Entendo que ela está me perguntando se estou só. Respondo: si, soy solo. Ela sorri e pede que a outra moça me explique. A outra jovem é morena, bochechuda e tem o cabelo enrolado numa trança. Nao se parece nada com espanhola. Pelas características e atributos desconfio que seja brasileira. Num espanhol meio forçado e fazendo mímicas me fala que só tem colchao no chao. Recuso. Estava muito cansado e fazia muito frio para dormir no chao. Antes de sair pergunto: usted no es española si? Ela responde: no, so brasiliana. Oh, brasileira? Ela sorri e fala: no, no. Percebo que está querendo tirar onda. Agradeço e saio em busca de outro albergue. Na terceira tentativa encontro vaga no albergue municipal. Uma hospitaleira simpática parecida com tia Luzia (tia da minha mulher) me mostra os beliches e fala que só tem vaga em cima. Olho e fico desanimado. Muito alto, estreito e sem grade de proteçao. Tenho medo de cair. Vendo a minha desaprovaçao, ela me fala que no anexo a 50 metros ainda resta uma vaga na parte de baixo. Topo. Ela me leva ao dito anexo que parece muito mais longe do que os 50 metros. A última cama estava com mochila e roupa em cima. Ela retira e coloca na parte superior do beliche e pede que eu ocupe. Pergunto se nao vai haver problema, pois alguém já havia reservado. Ela fala: no, no problema. Qualquer coisa mande me procurar. Ok. Ocupo a cama com pressentimento que nao vai dar certo. 
Após o banho, junto a roupa suja e vou procurar uma lavanderia, pois nao daria tempo de lavar à mao. A hospitaleira fala que as máquinas já estao lotadas e me indica justamente o albergue da falsa espanhola que queria que eu dormisse no chao. Chego ao balcao e a magrela me pergunta se eu consegui vaga em outro albergue. Sim, no municipal, respondo. Ela cochicha alguma coisa com a outra e me fala: aqui seria mucho mejor. Apenas sorrio. Pergunto se tem como lavar minha roupa. De forma meio grosseira ela manda eu lavar no municipal. Nao entendo o motivo mas parece que ficou ofendida por eu nao ter me hospedado alí. Explico que lá já está lotado e quase suplico para que ela aceita. Novamente ela cochicha alguma coisa com sua parceira (que parece brasileira) e recebe minha sacola com roupas sujas. Me cobra 7 euros e pede que eu apanhe lá pelas 8. Sinto que ela está me cobrando a mais.
Volto para meu albergue e descanso um pouco. No horário marcado vou ao bar buscar as roupas. Sim, ao bar, pois o albergue fica no fundo de um movimentado bar. A moça morena que se parece brasileira está só e manda que eu olhe numa escada para ver se as roupas já estao lavadas. Observo vários cestos e nao vejo as minhas. Me sento junto ao balcao e peço um café para passar o tempo. Fico observando o rítimo frenético daquela moça que corre de um lado para o outro para dar conta de atender todos os clientes. De vez em quando ela me fala algo e apenas balanço a cabeça. Nao estou muito a fim de falar em espanhol. 
Vou a escada novamente, enfim minhas roupas estavam lá, limpas e secas. Já passam das 9 e o bar já está quase vazio. Pago o café e quando me levanto para sair a dita espanhola me fala em bom e velho português: você é muito bonito brasileito. Confesso que fiquei lisonjeado mas nao esboçei nenhum sentimento de satisfaçao. Apenas me virei e respondi secamente: gracias señora. Adiós.
Quando cheguei ao albergue minha cisma se confirmou. Minha mochila estava na parte de cima de outro beliche e um senhor de cabelos brancos roncava tranquilamente na cama que seria minha. Resolvo dormir ali mesmo no único lugar que me restou, porém, noto que nao tem cobertor. Procuro a hospitaleira e conto o que aconteceu. Ela me pede para aguardar que já irá resolver. E nao é que a sem noçao queria acordar o velhinho para desocupar minha cama? Digo: nao! Nao faça isso! Apenas me arrume um cobertor que eu durmo aqui mesmo. Você nao tem saco de dormir? Pergunta. Nao. Minto. Nao estava a fim de me embrulhar com um saco de dormir. Ela pede que eu espere um pouco enquanto arruma um coberto. Deito, e muito cansado pego no sono mesmo com o frio de 3 graus. De repente sinto alguém me cobrindo. Pensei que fosse minha mae como ela costumava fazer na minha infância. Volto à realidade e vejo que é a hospitaleira. Gostei. Apenas finjo que continuo dormindo. Tenho que dormir rápido. Amanha será mais um dia de caminhada.

terça-feira, 14 de maio de 2013

ENCONTRO COM PAPAI NOEL (DIÁRIO DE UM PEREGRINO)



12 de maio (domingo)


Após um bom café da manha na cidade de Azofra, mochila nas costas e começo o meu 9º dia de peregrinaçao. Dessa vez a vegetaçao é meio sem graça. Nada de parreirais, nada de bosques. Ando quilômetros numa paisagem onde predominam as plantaçoes de cereais. Muito repetitivo. Dá a impressao que você nao está saindo do lugar.
Hoje dei uma aliviada na mochila. Deixei no albergue um livrinho de espanhol, um de francês e uma blusa de mangas compridas que ficou sem uso depois que comprei o casaco de frio. No Caminho é assim. Qualquer objeto a menos faz uma grande diferença.
Mal saio de Azofra encontro um velhinho de cabelos e barbas brancas idêntico ao meu Papai Noel de infância. Digo: olá Papai Noel! Ele me cumprimenta sorridente numa língua que nao identifico. Perguntei de onde era. Após algumas tentativas ele consegue me responder que é alemao. Aponta para sua câmara e entendo que está me pedindo para tirar uma foto sua. Aproveito e peço a um ciclista que passa para tirar uma nossa. O bom velhinho sorri o tempo todo. Uma figura! Que pena eu nao saber falar alemao! Aposto que ele deve ter ótimas histórias. Paro para descansar um pouco. De repente, eis quem passa por mim: o Papai Noel novamente, com aqueles passinhos curtos. Como pode um velhinho desse? Pensei que tivesse ficado há quilômetros para trás. Mistérios do Caminho de Santiago!
Às 12h em ponto entro na cidade de Santo Domingo. Faz muito frio, mas dessa vez estou prevenido. Os sinos da catedral tocam insistentemente. No meu pensamento imagino que seja para comemorar minha chegada. Na verdade a Província está comemorando o dia do santo. Tem procissao com banda e tudo. Fiquei parado observando tudo. Parecia um desfile de alegorias, muito bonito. O diabo é que só depois que a procissao passa é que me lembro das fotos.
Penso em almoçar aqui mas mudo de idéia. Já havia almoçado ontem e dois dias seguidos é um exagero. Faço apenas um lanche reforçado. Imagino que se meus amigos souberem que estou evitando almoço vao me chamar de unha de fome, ainda mais depois que reclamei da extravagância que fiz ao comprar um blusao de frio por quase 70€. Nao é nada disso. Nao sou unha de fome e nem estou na pindaiba. É que resolvi fazer o caminho como um verdadeiro peregrino. Planejei gastar somente mil euros em todo o percurso que fizer a pés. Aí já viu né? Tem que fazer conta e economizar. Quanto a almoçar, aprendi com a experiência que é melhor investir no jantar durante a caminhada. O almoço te deixa pesado e lento. Só uma questao prática.
Resolvo dar uma passada na catedral. Como a missa era festiva em comemoraçao a Sto Domingos, padroeiro da cidade, estava lotada. Só consigo chegar a um corredor lateral atulhado de gente assistindo a missa por tv·s de tela plana. Nunca vi isso em minha vida. Saio e pego o caminho novamente. A parte da tarde sempre é mais difícil O joelho começa a reclamar e os pés doem. Força, coragem! Tenho que atingir minha meta de hoje. Durante toda a caminhada penso em minha mae. Nao me lembro da última vez que passei esse dia longe dela. Inevitavelmente lembro da minha infância. Casinha de taipa, cobertura de tabuinhas (já viram?) e muita proteçao. Minha mae nao deixava faltar nada e nao havia um Natal em que nao ganhávamos um presente que misteriosamente aparecia aos pés da cama deixado pelo Papai Noel. Usava uma palmatória para nos disciplinar. Apanhei muito e nao fiquei revoltado e nem traumatizado como dizem nos dias de hoje. Sinto a sola dos meus pés doerem como se estivesse pisando nas pedras sem as botas. Lembro que Dona Cota (seu nome é Maria, mas só gosta de ser chamada de Dona Cota) me obrigava sempre a andar calçado. Andar descalço? Nem pensar! Coisas de Dona Cota. Por ísso meus pés sao mais finos do que pés de moça e agora dóem tanto dentro dessa bota. No saldo geral agradeço muito a ela por ter me educado com rigor e me ensinado os verdadeiros valores de ser um HOMEM. Salve Dona Cota! Muita saúde nesses seus 83 anos de vida! Qualquer dia desse vou escrever um livro só com os "causos" de Dona Cota.
Chego ao povoado de Castildelgado após 28 km de caminhada. Olho no meu mapa, e nao indica nenhum albergue. O próximo povoado com albergue fica há 10 quilômetros. Vejo uma placa com uma seta indicando um hotel. Estou muito cansado e resolvo ficar por aqui. Já andei mais que os demais peregrinos, pois a maioria ficou na cidade vizinha há uns 4 quilômetros atrás.
Após me arrastar mais um pouco avisto o tal hotel do outro lado da rodovia. Hostal el Chocolatero. Bonito nome, mas só o nome. A porta principal está trancada e entro pelo bar anexo. Estava repleto de gente e a julgar pela quantidade de caminhoes do lado de fora, eram todos caminhoneiros. Muito barulho e o chao estava sujo. Pela primeira vez ví um lugar sujo aqui na Espanha. Encosto no balcao e pergunto a moça se tem um quarto. Ela me olha e diz: um momento. Continua lavando copos. Eu alí em pé, cansado, corpo doído, doido para tirar as botas e me jogar na cama e aquela coisa lavando copos. Lembro que estou em país estranho e apenas espero calado. Em outra situaçao teria explodido. De repente aparece um senhor gentil e percebendo a situaçao, se prontifica a me atender. Ficha preenchida, me entrega a chave e me aponta a direçao. O quarto é minúsculo, mas tem até banheiro. Noto uma pequena banheira quadrada sob o chuveiro e pelo tamanho deve ser para escalda-pés. Encho com água bem quente e enfio meus pés calejados. Um alívio! Tomo banho e desço para o bar. Um cartaz indica que a janta será servida as 21h. Como assim? Aqui sempre é as 19. Peço um vinho e uma porçao de azeitonas e fico aguardando o tempo passar. Na tv está passando um jogo de futebol. Estou cansado e nem sei quem está jogando. Pelo barulho que os frequentadores fazem deve ser um jogo interessante.
Enfim, janto e subo para o quarto. Aproveito que nao tem ninguém roncando como nos albergues e durmo. Amanha será outro dia!

segunda-feira, 13 de maio de 2013

DIÁRIO DE UM PEREGRINO

Experiências do 7º dia de caminhada

(Esse teclado também nao tem til)


Após passar a noite com a "bruxa" que perturbara meu sono jogando no celular, saí bem cedo com muita disposiçao para caminhar. O caminho é em sua maioria entre plantaçoes de uvas. Fiquei imaginando o período da safra, todos aqueles parreirais carregados de uvas e os peregrinos se deliciando. Bateu um desejo enorme de comer uvas, mas como nao tem, no próximo povoado vou tomar um vinho. Aliás, vinho por aqui é uma obrigaçao. Passei por várias bodegas (como se chama aqui as fábricas de vinho) Na refeiçao quando você pede o menú, eles já colocam na mesa um cesto com pedaços de paes e uma garrafa de vinho. No começo estranhei bastante. Achei que eles tinham errado o pedido já que nao havia pedido nem pao nem vinho.
Muita ladeira e muita pedra no caminho. Começo a ficar cansado. A mochila pesa nas costas e os joelhos doem. Começo a sentir frio, muito frio. Paro e tiro da mochila o anorak (blusao para chuva) e visto. Nao adianta muito. Peregrinos passam por mim como se estivessem andando no Polo Norte de tao empacotados que estavam.
Próximo a cidade de Logroño avistei uma mesa na beira do caminho. Uma senhora simpática me chama: "brasiliero, brasiliero, venha carimbar su cridencial". Pensei, ué, como ela sabe que sou brasileiro? Será que tenho cara de brasileiro assim? De repente me dou conta que uso um chapéu com a bandeira do Brasil e todos no caminho me identificam facilmente. Encostei, entreguei minha credencial do peregrino e ela carimbou. Perguntei quanto era, já que só carimbamos a credencial nos albergues. Nao é nada. Respondeu. Se quiser pode comprar uma lembrancinha. Comprei uma pulseira com o símbolo do caminho e paguei 3€. Perguntei seu nome e cometi a indelicadeza de perguntar a sua idade. Se chama Maria e tem 80 anos. Inacreditável! Disse que está ali ha uns 30 anos e já viu muita coisa. Muitos brasileiros passam por ali. É tudo gente boa, gente alegre, falou dona Maria. Já viu muitos casamentos e luas-de-mel no Caminho de Santiago. Nunca foi lá, pois tem saude frágil e catarata que lhe impede de enxergar direito. Fiquei ali um tempo escutando as histórias de dona Maria. Vez por outra ela parava e enxugava os olhos cheios de lágrimas. Enfim, pedi-lhe para tirar uma foto, me despedi com um abraço e segui.
Entrei na cidade de Logroño por volta de 12 horas. Um painel eletrônico indicava 11 graus de temperatura. Um vento gelado invade minha pele como dardos cortantes. A sensaçao é de zero grau. Minhas maos estao congeladas. Tento enfiá-las nos bolsos do anorak mas nao consigo. O ziper é como navalha que corta. Entro numa lojinha que tem a vitrine cheia de produtos para peregrinos. Ví um casaco de frio que custa 69,95€. Olho em volta para ver se consigo um mais barato. Nao tem. Cometo uma extravagância e compro. Vesti e senti a diferença do meu corpo aquecido. Agora sim, posso seguir adiante.
Atravesso um parque chamado Parque de La Grajera. Um lugar muito bonito. Um grupo de idosos tomam vinho numa mesa de madeira sob as árvores. No lago muita gente pescando. Mais adiante uma escola rural. Estava no intervalo e muitas crianças faziam algazarra. Paro por um instante e fico observando. É bonito de se ver!
Andei 32 km. Hoje bati o récord. Entro numa cidade chamada Navarrete e começo a peregrinaçao em busca de albergue. Já era tarde e todos estavam lotados. Entro num hotel, lotado. A moça da recepçao me indicou o Hotel San Camilo que ficava mais a frente. Saí quase desesperado com medo de nao encontrar onde dormir. Com aquele frio, dormir no saco nao estava nos meus planos. A cidade tem muitas ladeiras e minhas pernas já nao me obedecem. Meus ombros, joelhos, dedos, tudo dói. Lembro do seu Franco e sorrio da situaçao. Chego ao Hotel San Camilo, olho, fico com medo de entrar. Pela aparência deve ser muito caro. Nao tenho opçao e vou logo perguntando: Tienes una vaga? Sin, Sin. Usted es solo? Sim, só eu, respondo aliviado. Entrego meu passaport, preencho a ficha e subo para o apartamento. Um luxo! Tinha até banheira com hidro massagem. 
Resolvi que teria uma noite de rei e acordaria tarde. Meu corpo precisa de descanso.
11  de maio. Acordo tarde com o corpo descansado e a alma aliviada. Desço e tomo um café bem reforçado pela primeira vez. O bacon está quase crú e com uma aparência horrivel. Lembro do livro que estou lendo "nao há dia fácil" O comandante da operaçao que matou Bin Laden conta que comia bacon cru para armazenar energia antes das incursoes que fazia a pés. Como bastante com ovos. Até que está bom. Nesse dia saio para a caminhada as 11h e 45 minutos. Uma excessao. Ah! Paguei pelo luxo do hotel 70€.
Nesse dia encontrei o brasileiro Pedro pela 3ª vez. Estava sentado à beira do caminho com um grupo. Pela 3ª vez estava com a mesma camisa da seleçao brasileira. Fiquei preocupado com ele, pois estava muito debilitado. Mal conseguiu levantar a mao para me cumprimentar. Me despedi e segui adiante. O Caminho de Santiago é assim. Você vai encontrando e reencontrando pessoas. O grande desafio é chegar lá. Ando com fé, com força. Cada vez que desanimo penso nos velhinhos que também estao caminhando. Muita saudade de casa, muito entusiasmado com tudo que estou aprendendo.

sábado, 11 de maio de 2013

ESSA NOITE DORMI COM UMA BRUXA (DIÁRIO DE UM PEREGRINO)

Albergue Pata de Oca - Povoado de Torres del Rio


No meu sexto dia de caminhada cheguei a um povoado chamado Torres Del Rio. Estava bastante cansado depois de uma longa caminhada em um trecho com muita ladeira e muitas pedras. Nesse dia encontrei pela segunda vez o seu Pedro, um carioca de 72 anos. Nosso primeiro encontro foi no 3º dia. Ele estava com a camisa da seleção brasileira e trocamos rápidas palavras, pois estava sentado e eu tinha que seguir em frente. Dessa vez encontrei novamente com a mesma camisa. Agora caminhamos um trecho juntos e conversamos bastante. Encontrei-o numa situação inusitada. Estava voltando e procurando algo. Me falou que havia perdido a sacola de comida que trazia na mão e não sabe como deixou cair. Ísso é comum no Caminho de Santiago. Falei que não procurasse mais pois eu tinha comida para 2. Ele ficou bem animado e seguimos em frente. Aparentemente ele não parece ter mais de 55 anos, mais achei-o bastante debilitado. Fazia grande esforço para me acompanhar mesmo eu tendo diminuido a marcha para andarmos juntos.
Seu Pedro me contou que é Procurador Federal aposentado e solteiro. Não tem família. Deixou uma namorada no Rio e está fazendo o Caminho para decidir se casa. Aos 72 anos ainda com essa dúvida seu Pedro? Entre outras histórias me contou que já engoliu muito sapo defendento o governo em causas que normalmente não defenderia. Tinha noite que não conseguia dormir com a consciência pesada. Mas era a natureza do seu trabalho. O Caminho era também uma espécie de purificação. Sei como é isso seu Pedro.
 Estava uma chuvinha intermitente e falei com seu Pedro que quando encontrassemos alguma estrutura pararíamos para almoçar. Já eram 12h e 40 minutos quando passamos por um local com 2 bancos de madeira no meio do nada. Seu Pedro se animou e apontou. Disse: olhe aqui, podemos parar nesse lugar. Não era bem isso que eu procurava. Como ia preparar o sanduiche debaixo de chuva? Como ví que seu Pedro estava com muita fome e cansado parei ali mesmo. Havia comprado no povoado anterior um pão, uma lata de atum e um pacote de queijo fatiado. Tirei da mochila e com meu canivete preparei um sanduiche bem gordo. Dididi ao meio e comemos até os farelos. Não sei se era bem essa a refeição que seu Pedro esperava mais demonstrou muita satisfação. Como sobremesa dividimos uma banana. Depois ofereci-lhe a única laranja que havia sobrado, e ele recusou. Sugeriu que guardasse para mais tarde. Seguimos em frente bem alimentados e dispostos. No povoado de Los Arcos seu Pedro resolveu ficar e eu segui até Torres Del Rio, onde parei para dormir.
Entrei num albergue e quando estava preenchendo a ficha, notei que entrou uma moça jovem de uns 30 anos no máximo. Tinha cabelos loiros encaracolados abaixo dos ombros. Notei que tinha uma pequena mancha avermelhada no rosto sob o olho esquerdo. Era bonita e não parecia cansada. A senhora do albergue me acompanhou e me mostrou um beliche. Escolhi a parte de baixo e fui logo me organizando para o banho. Nesse quarto os beliches ficam separados de 2 em 2 em pequenos cubículos separados por divisórias. Notei que os demais estavam ocupados. Quando saí para o banho eis que entra a moça bonita que encontrei na recepção. Me cumprimentou com um olá com um sotaque europeu e colocou sua mochila na parte de cima do beliche ao lado do meu. Aqui no Caminho é assim. Os quartos e banheiros dos albergues são mistos. Pensei: espero que ela não ronque.
Quando voltei do banheiro vi minha vizinha de beliche sentado na parte superior em posição de yoga, com as mãos espalmadas para baixo fazendo movimentos circulares e repetindo um mantra. Em pequenos intervalos parava e fungava longamente. Pensei: o que é isso meu Deus? Será que vou dormir ao lado de uma bruxa? Ô lugar mal assombrado! Olhei algumas vezes de soslaio e em algumas vezes ví que ela estava me olhando. Desviava o olhar. Se estava me olhando não estava concentrada. Talvez quisesse só chamar minha atenção. Deixei-a sozinha com seu ritual e desci para o saguão. Subi para o quarto no limite, as 22 horas -horário máximo para se ficar fora do quarto. Achei que ela já estivesse dormindo. Estava deitada jogando no celular. Um joguinho que fazia um barulho irritante tipo ploint, ploint. Assim ficou por horas atrapalhando o meu sono. De vez em quando me olhava e eu fingia que dormia. Não sei até que horas a "bruxa" ficou jogando, pois me concentrei e peguei no sono.
No dia seguinte acordei cedo, desci para tomar café. Voltei e a "bruxa" continuava dormindo. Que desaforo! Perturba o meu sono e agora fica aí dormindo? Uma ova! Dei uma olhada nas divisórias ao lado e me certifiquei que não tinha mais ninguém dormindo. Peguei meu i-fone e coloquei uma música do Zeca Baleiro no último volume. A "bruxa" acordou com o cabelo todo assanhado e a cara amassada. Agora sim, parecia uma bruxa de verdade. Me olhou com uma cara feia e falou alguma coisa que eu não compreendi. Pulou do beliche e foi para o banheiro. Achei melhor não esperar ela voltar. Joguei a mochila nas costas e desci rapidamente. Mais um dia de caminhada. Viva a liberdade! Viva os peregrinos! Viva os aventureiros e loucos!

Um sorriso franco (DIÁRIO DE UM PERGRINO)






Essa foto faz parte do texto "Liçoes de Santiago"





Seu Franco. Italiano, 78 anos

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LIÇOES DE SANTIAGO (DIÁRIO DE UM PEREGRINO)

Vamos ser Francos


(Esse teclado nao tem o til. Vai sem til mesmo)
Aqui deveria ter a foto do seu Franco mas nao consegui colar. Veja na outra página intitulada um sorriso franco.
   Lembram que eu falei do italiano de 78 anos que encontrei no caminho? Seu nome é Franco. Andava devagarzinho sem pressa. Todos que passavam ele dava um sorriso e dizia: bueno caminho. Quando passei, me chamou a atençao seus cabelos brancos e seu jeito de andar. Nao resisti, voltei e andei bem devagar por um tempo para conhecer melhor esse italiano. Quisera eu ter tempo para lhe acompanhar por todo o caminho. Com certeza iria ficar muito mais rico.
Seu Franco tem um sorriso encantador. Uma maneira de falar suave que nos envolve como se tivesse algo de hipnótico. Fala espanhol melhor do que eu (claro) e o tempo em que caminhamos juntos aprendi algumas liçoes que quero compartilhar com vocês. A primeira é que nao devemos ter pressa na vida. Tudo se encaminhará no seu rítimo normal e independente da nossa correria o mundo segue tal e qual. Muito sábio seu Franco. Fiquei pensando como nossa vida é corrida! Como vivemos sempre correndo atrás de coisas que parecem intangíveis e sempre queremos mais e mais. Quando escalamos uma montanha, chegamos ao topo cansados e já nos sentimos na obrigaçao de buscar outra montanha. Para que? Qual o objetivo de tanta correria? O que isso está acrescentando em nossa vida. Muitas vezes nessa correria, nessa pressa, deixamos para trás família, amigos, e outras coisas importantes que só nos damos conta quando já ficaram para trás, muito para trás que nao tem mais como alcancarmos. Um passo de cada vez, sem pressa. Nao importa como anda, mas como chegar. Falou e disse seu Franco. (Nesse momento escrevo com os olhos marejados).
Outra liçao muito importante que aprendi com seu Franco é que devemos sempre ver o lado bom da vida, apreciar as coisas boas que a natureza nos oferece. Aí me lembrei do texto que escrevi recentemente chamado "O Tesouro". Disse ele: se você encontrar fezes no seu caminho, nao veja como fezes. Veja estrumes que vao adubar a terra e ajudar a produzir alimentos que vao te alimentar ou produzir flores que vao enfeitar sua vida. Nós temos a péssima mania de nos ater às coisas negativas da vida que na maioria das vezes somos nós que as criamos. Nos concentramos tanto nessas coisas que esquecemos de apreciar e aproveitas as coisas boas. Com certeze seu Franco sabe apreciar muito bem a vida. No caminho ele observava com entusiasmo as flores, as borboletas e os pássaros. Vez por outra parava e fazia um comentário sobre um desses elementos.
Perguntei ao seu Franco onde ele encontrava tanta força e disposiçao para chegar aos 78 anos com essa vitalidade, com essa alegria? Com simpatia me disse: sorria sempre meu rapaz. Mantenha seu bom humor. Quando achar algo difícil, sorria. Quando encontrar alguém mau humorado, sorria. O sorriso é o antídoto para tudo nessa vida. Veja sempre o lado bom das pessoas e procure contaminá-las com boas atitudes. Ninguém é tao mal que nao seja capaz de se sensibilizar com algo bom. Nao leve tudo tao a sério e viva com leveza. Concordo com seu Franco em número, gênero e grau.
Notei que a mochila do seu Franco era pequena e leve. Perguntei se tinha outra bagagem no carro de apoio. É que muitos no caminho contratam esse serviço para carregar suas bagagens. Ele me respondeu que tudo o que precisava para seguir no caminho estava naquela mochila. Duas mudas de roupa, material de higiene, e tres frutas. Lembrou que comer pouco ajuda a caminhar bem e a viver melhor. Pensei: na próxima parada vou deixar a metade das coisas que carrego no albergue. Servirá a outro peregrino.
Andei mais um pouco com seu Franco até que ele disse que daria uma pausa para descansar e que eu poderia seguir adiante. Pedi para tirar uma foto, me despedi emocionado e segui o meu caminho. Deus queira que eu encontre outros francos nessa minha caminhada.

quarta-feira, 8 de maio de 2013

COISAS DE SANTIAGO (DIÁRIO DE UM PEREGRINO)

Solidão e dor



Estou caminhando há horas. Quando saí de manhã fazia um frio congelante. Agora faz um calor insuportável. Tomei coragem e joguei a mochila no chão para tirar o casaco de anorak. Há muito já estava quente mas não tivera coragem de parar para me livrar do pesado casaco que protege contra a chuva. Notei que a mohila pesada tinha feito um enorme calo nos meus ombros. Estava cansado, com dor em todo o corpo e com vontade de desistir. Pensei: vou chegar no povoado mais próximo, tomar um taxi e voltar para Madrid. Ísso é loucura. Onde eu estava com a cabeça? Já sem o peso da mochila nas costas ponderei e decidi seguir em frente. Desistir agora? Não. Não posso. Tomei um pouco de água que estava quente e no fim. Que droga de cantil! A moça da loja me garantiu que mantinha a água gelada o dia todo. Mentirosa! Estava com muita fome e comi umas bolachas que trazia na mochila. Já eram umas 3 horas da tarde e nem sinal de um povoado onde pudesse comer algo. Meu estômago doia e já não aguentava mais comer bolacha doce com água morna.
Há dias não falo com ninguém. É duro voçê se sentir só no meio da multidão. Tantos peregrinos no caminho conversando, fazendo algazrra e você ali sem poder conversar. Que droga! Por que não fiz um curso de inglês? Muitos tentavam falar comigo. Perguntavam se eu falava inglês. No, no speaking inglês. Na próxima vez juro que farei um curso antes de me aventurar pelo mundo. O pior momento é  na hora do jantar, onde fico vendo as pessoas estranhas puxando conversa e eu alí apenas olhando. Poderia agora estar conversando com gente de toda parte do mundo, aprendendo sobre seus costume, sua cultura.
Joguei a mochila nas costas e resolvi caminhar um pouco. Tinha que chegar em algum lugar. As pernas teriam que aguentar. A cada passo parece que o joelho direito vai desmontar. Meus pés estão cheios de bolhas e sinto a meia entrando na carne. Não para de passar peregrinos por mim e me desejar bom caminho. Bom caminho é uma merda. Tenho vontade de xingar todos, mas apenas balbucio algumas palavras. Resolvo parar novamente e esperar que todos passem. Ficar caminhando com pesoas estranhas e não poder conversar é irritante. Melhor ficar sozinho.
Vejo que já estou completamente só. Não escuto mais vozes nem passos. Melhor assim. Estou subindo uma ladeira que parece que não tem fim. Meu Deus, por que me colocaste neste lugar inóspito? Será que tem um propósito tanto sofrimento? Nos meu pensamentos me lembro do Calvário de Cristo e me envergonho de estar reclamando. Tomo fôlego e tento caminhar mais depressa. Bato com meu cajado nas pedras como se quisesse extrair sua energia. Apenas gasto a minha. 
Numa curva me deparo com uma cruz do lado esquerdo da estrada. Estava escrito em espanhol algo como "fim del camiño". Parei um instante, olhei o nome da pessoa. Fiquei imaginando sua aparência, sua idade e o que fazia. Vi que era da Colômbia. Que absurdo! Vir de tão longe para morrer nesse lugar miserável! Um frio percorreu minha espinha. Pensei na possibilidade de também morrer ali, sozinho, longe de casa e de todos que eu amo. Rapidamente conferi se meu passaport estava na bolsa que eu trazia na cintura. Se eu morrer pelo menos vão saber o meu nome e de onde vim. Me afastei daquele monumento macabro. Não queria morrer ali. Não ficaria bem duas cruzes juntas naquele caminho. Com essa idéia segui me arrastando.
Já estava ficando escuro. Li num folheto no albergue em que passei a noite que se deveria evitar andar após escurecer naquele trecho, pois havia animais selvagens e peçonhentos, além de muito precipício. 
Minha cabeça está latejando. Uma dor insuportável. Meus ombros arquejam e tropeço nas pedras do caminho. Nunca vi tanta pedra na minha vida. Apesar do calor sinto calafrios e minha respiração ofega com violência. Quase não consigo respirar. 
Vejo uma placa com o nome de um povoado e indicação de albergue e restaurante. Sonho com um banho frio, um jantar e uma cama. Era tudo que eu mais queria nesse momento. Que droga! A placa indica que ainda tenho que andar 7,5 km para chegar. Não vou aguentar. Minha visão escurece de repente. Sinto minha respiração mais violenta e uma dor no peito me faz arquear para baixo. Um pânico toma conta de mim como nunca havia acontecido. Sinto a morte me puxando e eu reluto. Não. Não pode ser. Aqui não. Luto para não desfalecer. Puxo o ar dos pulmões com toda a força e forço o passo. Consigo caminhar. Estou melhor. Respira, respira, tudo vai ficar bem. Vai Luiz Vieira, você consegue.
Estou agora caminhando mais leve. Algo errado aconteceu comigo. Já não sinto dores e nem minha mochila. Será que caiu e não percebi? Passo a mão nas costas e ela está lá como sempre. Como é qe pode eu não estar mais sentindo o seu peso? Caminho mais depressa, mais depressa e meus joelhos não dóem. Meus pés estão suaves e confortáveis dentro das botas. Minha respiração está leve como se eu tivesse descansando. Será que morri? Não é possível. Sopro minha mão para ver se tenho ar. Ok. Me dou um beliscão para sentir o meu corpo. Ok. Definitivamente não morri. Sigo caminhando cada vez mais rápido. Vejo o chão deslizando sob meus pés como uma esteira rolante. Flutuo. Experimento uma corrida e corro desvairadamente por um tempo. Sinto apenas o chão passando mais rápido sob meus pés. Calma. Resolvo parar de correr com medo de gastar essa energia que ainda não conheço. Ademais, o Caminho de Santiago é para caminhar e não para correr. Já estou chegando no povoado. Já posso ver as primeiras luzes. Estou animado e eufórico sem saber o que está acontecendo. Apenas aproveito essa sensação.
De repente ouço vozes. Barulho conhecido. Esfrego os olhos e vejo pessoas ao meu redor. Estico a perna e bato com força na lateral da cama. Só então percebo que estou acordando de um sonho no albergue Lurgorri no povoado de Mañeru. Pulei do beliche, me vesti e sai sem tomar café. Vou caminhar para pensar nesse sonho. O que será que significa?

terça-feira, 7 de maio de 2013

UMA BELA LIÇÃO DE VIDA

07 de maio - 4º dia de caminhada


"Coragem, coragem, se o que você quer é aquilo que pensa e faz. Coragem, coragem que eu sei que você pode mais, muito mais" (Raul Seixas)


Estou saindo hoje para o meu 4º dia de caminhada. Muito cansado e abatido, quase desanimado. Para piorar meus pés resolveram apresentar a fatura. Dois calos resolveram dar o ar da graça. Envolvi-os com curativos, calcei as botas com dificuldade e saí. O percurso seria de Pamplona a Ponte la Reina. Vamos caminhar que o caminho é longo.
Já falei que no caminho se encontra muito idoso? Pois se encontra aos montes. Logo na saída cruzei com um senhorzinho de cabelos brancos que andava bem devagar. Parei, olhei e voltei para tentar conversar com ele em espanhol. Um italiano chamado Franco de 78 anos. Bem humorado e disposto me contou que estava sem pressa e repetiu um ditado espanhol: "não importa como se anda, mas como se chega. Um passo de cada vez". Disse que pretendia chegar a Santiago lá para julho ou agosto e faria uma parada de uma semana no meio do caminho. Fiquei um tempo conversando com seu Franco e aprendi muito com ele. Depois segui adiante.
Quando sai do hotel, estava muito mal. Tudo doia. Inexplicavelmente esqueci da dor e passei a andar com mais disposição. Será que foi o milagre do seu Franco? Me sinto mais revigorado e até o joelho que doia já não dói mais. Acho que o Caminho é assim. No começo te testa para ver se você é digno de trilhar. Depois seu corpo vai ganhando resistência.
Deveria ter parado em Ponte la Reina. Ainda estava cedo e estava com muita disposição. Não havia entendido porque os peregrinos todos ficaram lá. Segui em frente praticamente sozinho. Só dois ciclistas passaram por mim. Logo entendi. O próximo povoado que se chama Mañeru fica a 5 km de distância e é só subida. Pense numa subida bruta? Para quem já tinha andado 24 km, o ideal era dormir em Ponte la Reina. Mais tudo bem. Cheguei sem problema e me hospedei no único albergue do povoado. Depois do jantar para minha alegria, encontrei um violão. Perguntei ao hospitaleiro se podia tocar e ele autorizou. Disse que era de um amigo que tinha morrido no ano passado e até então ninguém tocara. A gringaiada está empolgada e o hospitaleiro já nos ofereceu a segunda garrafa de vinho por conta da casa. Vou acabar com essa festa. Violão na capa sob protesto da pequena platéia. Hora de dormir para um novo dia.
Amanhã mostro a foto do seu Franco. 

É CAMINHANDO QUE SE FAZ O CAMINHO

Meu segundo dia de caminhada foi desafiador. Dessa vez consegui dormir e jà não tinha a ansiedade do primeiro dia. Já me sentia um campeão por ter atravessado os alpes gelados da França. O percurso desse dia seria leve. Apenas 20km até Zubire, semlurgo montanhas geladas e com vários povoados ao longo do caminho. O primeiro desafio do dia foi o café da manhã. O albergue dispunha daquelas máquinas com tudo onde você mete moedas e ela cospe o produto que você quiser. Só tinha visto em filmes. Como um bom matuto fiquei observando outros peregrinos manusearem as geringonças, e só então me arrisquei. Fui colocando moedas de euro e digitando o código de cada produto. Tudo certo. Café com leite, sanduiche, suco de caixinha e água mineral. 

Estava tão abatido que pensei duas vezes antes de pegar a estrada. Os joelhos doiam muito e a mochila parecia mais pesada. Dei uma última olhada para ver se alguém não teria colocado uma pedra dentro. Depois que você joga a mochila nas costas e começa a andar parece que é empurrado por uma força estranha. Sem perceber você já está na trilha e animado novamente. A parte da tarde é mais difícil. As pernas já não obedecem, as costas doem muito e tenho que andar na posição de corcunda para não cair para trás. Estou descrevendo o que senti, mas não reclamando. Já sabia que o Caminho de Santiago era difícil. Apesar de toda dificuldade o peregrino é recompensado com uma paisagem estonteante, deslumbrante. Além do mais, uma caminhada dura, sem nada para pensar a não ser no caminho te faz repensar toda a sua vida. Um filme vai repassando na sua cabeça e você tem a oportunidade de passar alguns trechos a limpo.
Cheguei a Zubire ainda cedo, as 16 horas. É uma cidadezinha encantadora que parece ter saído das telas de cinema. Muito limpa e bem organizada. Como os albergues estavam muito lotado me permiti um luxo. Me hospedei numa pensão. Teria um quarto só para mim por 25€. O banheiro era em frente e tinha até toalha de banho. Como estava só e podia ficar com a luz acesa, aproveitei para ler o livro que comprei no aeroporto de São Paulo. Não há dia fácil conta a história da equipe da Marinha Americana -Os Seal- que mataram Ozama Bin Lader. Depois comento sobre ele.
Dormi muito bem e até sonhei. Estava assistindo a uma sessão na Câmara. Êta sonho besta!

segunda-feira, 6 de maio de 2013

A TRAVESSIA DOS ALPES

04 de maio, primeiro dia de caminhada.

Início do caminho 

Às 07:55 atravessei o portal de Saint Jean Pied-do-Port para dar início a parte mais difícil da caminhada. Seriam 30 km de subida nos alpes franceses sem nenhum local de apoio. Antes uma passadinha na velha igreja para pedir força e proteção. Lá fui eu todo empolgado! Os alpes franceses é um grande desafio para os peregrinos, tanto que a maioria decide começar de Roncesvales. Sabia que seria uma caminhada dura montanha acima. Só não me avisaram que a montanha estava em grande parte coberta de gelo. Uma névoa cobria tudo de maneira que só dava para enxergar a cerca de dois metros. O vento gelado queimava a alma e a altitude roubava o oxigênio. Vi peregrinos cheios de agasalhos e eu apenas usava uma blusa de mangas compridas. Num certo ponto parei e vesti meu anorak (um agasalho para chuva). Deu uma amenizada mas minhas mãos e meu nariz estavam congelando. Mal conseguia segurar o cajado.
Não desanimei e segui firme. Andava rápido para me aquecer. Apesar de tudo estava empolgado, asfinal ver uma montanha de gelo ao vivo era uma grande novidade.
Lá pelas 14 horas parei para almoçar. Comi o sanduiche que levei na mochila e a barra de chocolate. Uma breve parada e segui em frente. Meu joelho direito começou a doer muito. Mal sinal. Mais uma paradinha para alongamento. Não podia desanimar justo no primeiro dia. 
No início da caminhada ia ultrapassando todo mundo. Agora mal conseguia me mover e era ultrapassado a todo instante por grupo de peregrinos que me cumprimentavam com o tradicional Bueno Camino. Fiquei impressionado com o numero de idosos que caminhavam. De repente, do alto da montanha gelada uma miragem: era a cidade de Roncesvale. Que alívio. Agora era só uma descida íngreme e chegaria lá.
09 horas de caminhada e 30 km vencidos. Feliz. Me hospedei num albergue que tinha uma estrutura melhor. Um banho quente e um bom jantar (de novo o tal do menu do peregrino). Dessa vez consegui dormir bem e me preparar para o dia seguinte.

DIÁRIO DE UM PEREGRINO

Sain Jean Pied-do-Port: o início da caminhada rumo a Santiago de Compostela


Sain Jean Pied é um pequeno vilarejo francês onde abriga um antigo monastério. É de lá que sai os peregrinos mais atrevidos rumo a Santiago. A maioria prefere sair de Roncesvale para não ter que enfrentar os pirineus franceses e eu mesmo teria feito isso se não fosse a idéia fixa de fazer o percurso do início tradicional. Um lugarzinho com aspécto medieval onde nem carro pode entrar. O taxista me deixou num local  próximo ao portal principal e me desejou buenas sorte. Realmente iria precisar muito.
O lugar só tem uma rua com albergues, restaurantes e lojinhas dos dois lados. Por se tratar de um monastério tudo fecha as 09 horas. Eis um detalhe que não sabia e quase me custou uma noite de fome. Quando consegui me hospedar num albergue -Albergue dos Peregrinos- a senhora me falou que fechava as 21h e 45m. Já eram quase 21 e sai correndo para jantar. Em cada restaurante que entrava alguém fazia sinal indicando que já havia encerrado. Outros falavam fini, fini. Começou bater o desespero pois a fome era muita. Enfim, entrei num recinto e fui logo fazendo sinal de comer com a mão na boca (aquele velho sinal que vocês conhecem). Uma garotinha de uns seis anos sorriu, repetiu o sinal e fez um barulho com a boca, algo parecido com bezerro mamando. Fiquei feliz em ver essa cena que parecia um sinal positivo. Uma francesa simpática me conduziu até um salão e me indicou uma mesa. O ambiente estava cheio e barulhento. O garçom trouxe um cardápio e a única coisa que entendi foi o menu do peregrino. Pedi. A entrada foi uma sopa rala mas bem saborosa. Como prato principal veio um prato de macarrão com uma coxa de algo parecido com frango. Comi rapidamente pois já se aproximava das 21 e 45. Dormir ao relento com aquele frio congelante não fazia parte de minha aventura. Quando fui saindo a senhora me abordou e me entregou um pedaço de bolo embrulhado. Entendi algo como "faz parte do menu". Gracias. Agradeci e sai correndo.
A pousada é muito simples e aconchegante. Cada quarto tem 04 beliches e são mistos. Há uma  sala onde temos que deixar as botas e uma área com banheiros também mistos. Observei que iria dividir o quarto com pessoas idosas e de início achei bom. Pensei: assim não vai ter barulho característicos dos mais jovens que gostam de ficar conversando.
Deitei na parte de baixo de um dos beliches para tentar dormir. Estava muito ansioso, pois no dia seguinte começaria a grande caminhada. Um senhor próximo roncava e fazia um barulho absurdo. Lembrei de minha mulher que me diz que de vez em quando eu ronco. Será que faço toda aquela barulheira? Impossível. Não ia conseguir dormir. Peguei o livro que havia comprado no aeroporto de S. Paulo e fui para ante sala ler um pouco sob a luz de minha lanterna, pois não se podia acender luzes. Lá pela meia noite voltei para o quarto para tentar dormir. O roncador continuava firme e forte. Pensei em tomar um comprimido para dormir que a médica havia me passsado para dormir no avião. Desisti. Tinha que estar bem lúcido para vivenciar aquele momento. Consegui apenas dar pequenos cochilos e de hora em hora olhava o relógio na esperança de já ter amanhecido o dia. 
Enfim, 06 horas da manhã. Levantei, tomei o café do peregrino. Um café bem pobrezinho com pão, manteiga, geléia de frutas e café com leite. Passei numa quitanda e comprei uma maçã, um sanduiche, uma barra de chocolate e água. Tudo pronto para começar a grande aventura.