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quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

UM CONTO DE NATAL

O trânsito essa noite estava infernal. Parece que todo mundo teve a infeliz ideia de sair de carro ao mesmo tempo nessa véspera de Natal. E para completar, todos estavam impacientes e buzinavam ao mesmo tempo, formando uma orquestra infernal que destoava com as músicas natalinas que ecoavam das lojas que insistiam em permanecer abertas naquele horário.

Paulo se sentia irritado e angustiado. Pela centésima vez olhara o relógio de pulso e logo em seguida o visor do celular. Tinha essa mania. Olhava para o seu Rolex e em seguida dava conta de que não observara os ponteiros. Acabava sempre conferindo a hora pelo smartphone que naquele momento cravava 21:15h. "Com esse maldito trânsito que não anda vou acabar chegando em casa atrasado para a ceia mais uma vez", pensou impaciente. No ano anterior saiu do escritório tarde e com o engarrafamento no trânsito só conseguiu chegar em casa no final da ceia. Encontrou sua mulher de péssimo humor e os dois filhos acabrunhados por mais uma vez terem jantado sem o pai. Isso lhe custou quase um mês de clima de velório e múltiplas reclamações em casa: "você dá mais atenção para seu trabalho do que para a sua família", "seus filhos vão crescer sem conhecer o pai", "você vai acabar se matando de tanto trabalhar e quando você morrer não vai fazer falta à empresa". Paulo lembrava dessas cobranças como uma bofetada no rosto. "Mulher é tudo igual. A gente se mata de trabalhar para dar uma vida decente à família e só recebe incompreensão", pensava irritado  socando o volante.

Naquela véspera de Natal Paulo havia trabalhado até tarde na empresa. Por mais que tentasse não conseguira sair mais cedo. Esse ano os negócios sofrera uma queda devido a recessão que o pais atravessava. Não conseguia parar de pensar nos prejuízos pela queda nas vendas. Teria que demitir mais de cem funcionários no início do ano vindouro. Desde que assumiu a Presidência após a morte do seu pai, aquele teria sido um ano terrível, um verdadeiro teste de fogo para um jovem empresário de apenas 39 anos. Mesmo com a crise, Paulo não tinha do que reclamar. Sua empresa prosperava e com a força do seu trabalho conseguiu transformar uma pequena empresa familiar num gigante conglomerado com filiais em oito Estados. Seu próximo projeto era abrir uma filial em Nova York e a partir daí, o mundo seria o limite.

Paulo era viciado em trabalho. Herdou essa característica do pai. Gostava de cuidar de tudo pessoalmente e era perfeccionista ao extremo. Mesmo delegando tarefas, tinha que acompanhar tudo de perto e constantemente acabava concluindo as tarefas que sempre julgava mal acabadas. Aquela frase de sua mulher no Natal anterior lhe causava angústia: "...quando você morrer não vai fazer falta à empresa". "Será? Como ficaria essa empresa sem minha presença?" Pensava Paulo preso àquele trânsito infernal e congestionado. Sua cabeça latejava insistentemente. Uma pequena dor havia começado à tarde e agora parecia que queria arrebentar seus miolos. Isso vinha acontecendo com frequência e sempre prometia à esposa que procuraria um médico na próxima vez. "Isso é stresse. Nada que uma aspirina não resolva", dizia sempre despreocupado.

Paulo abriu o vidro da janela do seu Mercedes para renovar o ar. Apesar co clima agradável que fazia, se sentia sufocado e angustiado naquela redoma de aço e vidro. De repente, surge na janela do seu carro um mendigo com um gorro de Papai Noel na cabeça e uma longa barba amarelada e desengonçada. Um sujeito esquálido, alto e com aparência esquisita. Estendeu a mão e suplicou: "me dê um trocado irmão. É para inteirar um prato de comida". "Saia daqui vagabundo, vá trabalhar", falou indignado levantando o vidro rapidamente. "Quando preciso de uma pessoa para limpar meu jardim, ninguém aparece. E olhe que pago caro! Agora vem esses vagabundos pedindo dinheiro para se drogar. Esse mundo está mesmo perdido", pensou Paulo indignado. Acelerou o carro com força como para descarregar sua raiva. Buzinou insistentemente e conseguiu andar uns vinte metros. Sua cabeça doía ainda mais e dessa vez parecia que seu cérebro estava sendo comprimido.

O trânsito começou a fluir lentamente. No rádio dava a informação de que a cerca de dois quarteirões um acidente de moto havia tirado a vida de um jovem de 25 anos que imprudentemente entrou na preferencial e colidiu com um veículo. "Esse não vai ver o Natal". pensou Paulo. Além da dor de cabeça que o incomodava, agora sentia um forte formigamento e uma dor estranha no braço esquerdo. Aquilo era novidade para ele. Enfim, Paulo conseguiu sair do engarrafamento que foi causado pelo acidente. Passou devagar e ainda viu os bombeiros retirando um corpo sem vida. Virou à direita e acelerou fundo seu mercedes. Até que enfim conseguiria chegar em casa, tomar umas aspirinas, tomar um banho rápido e cear com sua família que já deveria estar impaciente, pensou aliviado. Aquela dor no braço foi se tornando mais intensa e agora sentia uma forte pressão no centro do tórax. Começou a bater um desespero pois lembrou de uma publicação que havia lido no Blog do Luiz Vieira sobre o infarto do miocárdio. "Será? Não pode ser. Estou com a saúde em dia e não tem nem três anos que fiz um checkup. E eu só tenho 39 anos", falou Paulo em voz alta para si mesmo.

Paulo sentiu o mundo girar à sua volta. Percebeu que perderia os sentidos a qualquer momento. No início acelerou na esperança de chegar a algum hospital. Respirou fundo, puxou o ar com todas as forças para o pulmão, forçou uma tosse como havia lido. Nada. Sentiu que iria desfalecer. Encostou o carro numa via onde era proibido parar e só conseguiu ouvir os protestos das buzinas que ecoavam irritantemente. Tudo começou a escurecer de repente. Arregalava bem os olhos mas só conseguia enxergar sombras turvas e borradas. Conseguia ouvir vozes como se estivessem longe e com eco. Mas ainda sentia fortes dores e seu coração explodia dentro do peito. De repente o mundo parou de girar. A dor desapareceu completamente e tudo que ouvia era vozes distantes e barulhos que ecoavam em seus ouvidos. Bateu um profundo desespero quando em meio ao burburinho identificou a seguinte frase: "esse já está morto. Foi infarto fulminante". Não, não. Isso não. Não estou morto. Paulo tentava gritar mas seus lábios não se mexiam. Sua voz estava apenas na sua consciência e não conseguia mexer sequer um músculo. "Será que estou realmente morto? Não meu Deus. Não pode ser! Ainda sou muito jovem e não terminei minhas tarefas", pensava Paulo com o pouco de consciência que lhe restara.

Ouviu os sons de sirenes e sentiu quando alguém lhe segurou o pulso esquerdo. Conseguiu ver um vulto vestido de branco que falou: "tarde demais. Já está morto. Pode remover o corpo para o Instituto Médico Legal. Chamem o reboque para desobstruir a pista. Vamos lá gente! Temos outro chamado urgente para atender. Nada mais poderá ser feito por esse infeliz". Paulo entregou os pontos. Aquele era realmente o fim. Lembrou que um amigo médico havia dito numa certa ocasião que em alguns casos, após uma morte traumática a consciência ainda funciona por alguns segundos ou até minutos. "O coração para mas o cérebro continua vivo", teria dito o seu amigo médico. Em outra ocasião lera em um artigo sobre a Revolução Francesa que quando o carrasco guilhotinava o condenado, segurava sua cabeça e mostrava ao povo. Segundo acreditava, as cabeças decepadas ainda conseguiam enxergar por cerca de 20 segundos, assim, veriam a multidão aplaudindo a sua morte.

Nesse momento um filme começou a passar na mente de Paulo.  Lembrou que já fazia muito tempo que não havia dito "eu te amo" aos seus filhos. Já nem se lembrava mais da última vez que foi ao quarto das crianças (agora adolescentes) para dar um boa noite. Estava sempre trabalhando muito e nunca tinha tempo para esses detalhes. E os amigos? Muitos ele nem lembrava mais os nomes. Agora tudo o que tinha eram parceiros de trabalhos e de negócios. Igreja? Religião? O que era isso. Ficava irritado sempre que sua mulher insistia em rezar em algumas refeições solenes. "Isso é mito alienante", dizia. Lembrou de como havia sido intolerante com as pessoas, como foi frio e insensível com sua família, com os empregados, com os funcionários do restaurante onde comia de vez em quando. Como foi grosso com a empregada que estragou sua gravata de seda italiana. "Que idiota eu fui! Quanta besteira eu dei importância! Quanta coisa realmente importante eu deixei passar! Que estúpido fui! E agora seu Paulo? O que adiantou tanto trabalho? O que adiantou tanto dinheiro, tantas preocupações? Tudo o que te resta agora é ser enterrado e ser comido pelos vermes que farão um favor a esse corpo inútil", pensava revoltado.

Paulo pedia a Deus uma única chance. Prometia que faria tudo diferente se voltasse a respirar. Já nos seus últimos devaneios viu Deus aparecer à sua frente. "Não pode ser. Você é realmente Deus?" Falou olhando fixamente para aquele mendigo que havia enxotado minutos atrás. O mendigo abriu um grande sorriso amarelado e disse: "não meu amigo. Sou apenas um pobre coitado que ia passando por aqui e viu um irmão precisando de ajuda. Fique calmo. O senhor teve um princípio de infarte mas graças a Deus eu fiz uma massagem e respiração boca-a-boca que aprendi no abrigo. Agora o pior já passou.

Paulo sentiu uma profunda alegria. Não acreditava no que estava vendo e ouvindo. Ficou feliz ao ouvir o barulho do trânsito, as buzinas impacientes. Se alegrou ao poder enxergar as luzes da cidade e as decorações natalinas. Pela primeira vez pode perceber como aquilo era lindo. Abraçou o mendigo com força e perguntou: "Qual o seu nome amigo?" "José", respondeu o mendigo meio tímido. Paulo olhou no seu relógio e pela primeira vez, olhou diretamente nos ponteiros que marcavam 10:15. "Agora somos amigos José. Hoje você será meu convidado para a ceia de Natal com minha família", falou com entusiasmo.

Chegando em casa, Paulo abraçou sua mulher tão afetuosamente como nunca havia feito. Da mesma forma abraçou seus filhos, sua sogra e os demais convidados que já o esperavam desesperançosos. Ninguém entendeu nada. Paulo disse de forma convincente: "perdoem-me pelo atraso. Depois explico tudo à vocês.Trouxe um amigo muito especial para jantar conosco. Esse será o melhor o Natal de todas as nossas vidas. Feliz Natal a todos com Jesus!

2 comentários:

  1. Sao as estrelas, as estrelas lá no alto, que governam a nossa existência(William Shakespeare).

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  2. Nem sempre a vida nos possibilita uma segunda chance. Entao vamos perdoar quem nos magoa e acreditar que tudo pode da certo. Só depende de vc.

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