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sexta-feira, 13 de outubro de 2017

HOMENAGEM AOS PROFESSORES - SÓ PARA SACANEAR...

Professor Fernando completou em fevereiro de 2017, trinta anos de dedicação exclusiva ao magistério. Pensou até em fazer uma festa de comemoração, mas preferiu deixar para outra ocasião. Quem sabe, nos quarenta anos, a situação esteja melhor e haja algum motivo para comemorar?

Começou a lecionar numa pequena escola da periferia de Marabá-PA. No começo, tudo era sonho. Planos de aulas inovadores, teorias pedagógicas revolucionárias, ideal de transformar o Brasil através da educação... O professor Fernando vibrava! Seus olhos brilhavam a cada etapa no início de sua carreira. Mesmo com as limitações, a falta de recursos, falta de valorização da carreira do magistério, falta de compromisso dos governantes, falta de papel, de giz, falta de... ele continuava otimista e mantinha a esperança de que um dia tudo haveria de melhorar. "Um dia esse país vai tratar o professor como ele merece. Um dia a educação será valorizada nesse país e o Brasil será um gigante, uma potência mundial" - sonhava Fernando.

Fizesse sol ou desabasse uma tempestade, professor Fernando sempre estava firme e forte. Com seu planejamento sempre atualizado, ele trabalhava sempre com o brilho no olhar e com o compromisso de quem quer deixar um legado para a humanidade. Nunca faltou ao seu trabalho, exceto nas raras exceções que adoecera em função da rotina da profissão, e mesmo assim, sempre dava um jeitinho de ir à escola. Professor Fernando era daqueles abnegado, comprometido até demais.

Sua missão de educar ultrapassava as fronteiras dos muros da escola e atingia toda a comunidade. Além da formação pedagógica, oferecia também orientações de cidadania, ética e, sempre dava um jeito de envolver as famílias no processo de formação. E ainda tinha tempo de organizar o sindicato dos trabalhadores em educação. Como militante, acreditava sempre na luta como forma de avançar e conquistar dias melhores.

Os anos se passaram e o professor Fernando via com desespero a educação se afundar e se degenerar no seu estado e no seu país. A cada ano, sofria com as crescentes faltas de recursos, o sucateamento das unidades escolares, a desvalorização dos professores, o descrédito e apatia da comunidade escolar. As constantes greves já não surtiam resultados, a não ser a depreciação e o desgaste dos próprios professores que tinham que repor aulas aos sábados e estender o ano letivo num círculo vicioso que não tinha fim. Antes, o apoio da comunidade era um alento, agora, notava-se um crescente clima de hostilidade e até agressões. "Esses vagabundos só querem viver fazendo greve", "não querem trabalhar e ficam prejudicando os alunos" - ouvia dos pais indignados. Ultimamente, um outro problema vem se agravando na realidade dos professores: a violência em sala de aula. O professor vem sendo destituído de sua autoridade natural e isso vem abrindo espaço para as ações de violência e desrespeito dentro e fora de sala de aula.

Se antes o objetivo do professor Fernando era mudar o sistema, agora lutava com todas as forças para não deixar o sistema lhe mudar. Queria preservar pelo menos a sua capacidade de sonhar. Assistia com tristeza os seus colegas professores desanimados e descrentes diante da realidade. Via professores novatos chegarem na escola cheios de sonhos e entusiasmos, e, no meio do ano letivo mudarem completamente o estado de ânimo. Ouvia colegas comentando que não tinha mais solução, que não adiantava dar murro em ponta de faca. "Vamos cozinhar esse galo bem devagar" - comentava um professor com ironia. "Calma colega, você não vai mudar nada aqui. O sistema não deixa" - falava outro com descrença. "Ei professor, vá enrolando um pouco aí senão vão te chamar de caxias". "Senta aí rapaz, o sinal já tocou mas ainda não é o fim do intervalo. Relaxe!" - brincava uma professora.

Em abril de 2017 o professor Fernando recebeu um comunicado da Secretaria Estadual de Educação  (SEDUC) onde convocava-o para comparecer na sede da capital em 24 horas para resolver pendências. Não havia a mínima condição de cumprir àquela convocação. A capital ficava a 700 quilômetros de distância, além da falta de tempo e condições financeiras para a locomoção. Enviou uma resposta por SEDEX onde justificou a impossibilidade do comparecimento no prazo. Solicitou um prazo maior e sugeriu que enviassem as passagens ou agendasse para a 4ª URE (Unidade Regional de Ensino) que fica no seu município. A SEDUC ignorou sua resposta e mandou mais uma convocação. Mais uma vez ele respondeu e nada. Recebeu a terceira e quarta convocação. "O que está acontecendo? Esse povo está se fazendo de doido? Nem se dignaram a responder minhas justificativas e sugestões!" - pensou indignado o professor Fernando. E foi à Belém ver do que se tratava a convocação, pois a última falava de uma dívida do professor com o estado.

O professor Fernando chegou a Belém todo apreensivo e curioso. Enfim, iria conhecer a sede da Secretaria Estadual de Educação. Antes, deu uma passada no palácio da justiça. Um antigo prédio onde funcionou uma das escolas mais antigas de Belém - Colégio Lauro Sodré. Ficou encantado com a suntuosidade, o luxo e a organização do local. Piso em porcelanato, salas amplas e bem iluminadas,, mobília impecável, paredes decoradas com obras de arte, jardins externos bem conservados, funcionários sorridentes e prestativos... Enfim, um ambiente perfeito onde tudo funcionava perfeitamente. "Se o palácio da justiça é assim, a sede da educação deve ser muito mais bonita" - pensou encantado o professor Fernando. Com essa empolgação, tomou um coletivo e seguiu rumo a avenida Augusto Montenegro para a Secretaria Estadual de Educação. Enquanto se equilibrava em pé no coletivo lotado ia pensando nas possibilidades: "quem sabe eu consigo falar com a secretária de educação? Quem sabe ela não me ouve e leva em conta minhas idéias para modernizar a educação do Pará? Pelo menos a coordenadora do setor de recursos humanos vai me atender e perceber que foi um engano e eu não devo nada ao estado".

Ao descer do coletivo em frente ao prédio da SEDUC o professor Fernando não acreditou no que seus olhos insistiam em mostrar. Esfregou os olhos na esperança de ser uma ilusão de ótica. "Será que era esse mesmo o endereço?" - pensou incrédulo. Realmente não era nenhum engano. Aquele prédio velho, sombrio que mais parecia um mausoléu abandonado era a sede da educação do estado do Pará. Caminhou decepcionado e, a medida que se aproximava a visão era mais surreal. Entrou no bloco indicado e caminhou pelos corredores sem acreditar no que via. Paredes velhas e descascadas que pareciam não ver uma demão de tinta há 20 anos. Nas salas observava fiação exposta, tetos com sinais de infiltrações, mobília velha e danificada, cartazes velhos fixados na parece sobre restos de cola e papéis grudados. O cheiro de morfo misturado com odor de curtume dominavam o ambiente. Em cada sala que entrava mais se surpreendia com a visão. Via mesas entulhadas com pilhas de papéis dando a impressão de que estavam ali há uns 30 anos. Em outras mesas notava pratos sujos e restos de comida. "Que horror! Isso é a sede da educação? Agora entendo porque nada funciona nas escolas" - pensou assustado o professor.

O professor Fernando foi tratado com descaso e desdém na SEDUC. Parece que ninguém queria ouvi-lo. Um lhe mandou esperar pois estava no horário de almoço. "Uai, mas a convocação diz que eu deveria comparecer das 8 às 14 horas. Ninguém me avisou que tinha intervalo para almoço" - resmungou desanimado. Após longa espera onde ele observava servidores manuseando celulares, conversando ao telefone, conversando despreocupado com colegas, mexendo nos computadores, uma moça com jeito de assessora de funerária anunciou: "entre que a 'dotôra' vai te receber. Ao entrar na sala da "dotôra" cumprimentou-a com cortesia: "olá, boa tarde. Sou o professor Fernando de Marabá." "Pois não professor!" - murmurou com mal humor a servidora sem ao menos levantar os olhos. No momento veio instantaneamente na cabeça do professor a música do Chico Buarque de Holanda: "de tanto gorda a porca já não anda... (cálice). "A senhora quem é?" - perguntou Fernando. "Sou a ouvidora" - respondeu secamente. "A senhora ouvidora tem um nome que eu possa chamá-la? - perguntou insolente. 

A conversa foi frustrante e decepcionante. O professor descobriu que tinha uma dívida de 19.899,00 com o estado e como não havia atendido às 4 convocações, já fora encaminhada para a dívida ativa e em breve seu nome constaria no cadastro negativo. "Seu nome ficará sujo até o senhor pagar o que deve", sentenciou com crueldade e sadismo a servidora.

O professor Fernando saiu da sala frustrado e sem esperança. Do lado de fora, sentou-se num banco de madeira e chorou. Pela primeira vez sentiu que todo o seu trabalho ao longo dos trinta anos não valeu de nada. "Vou desistir de ser professor, não vale a pena. Esse estado de vampiros não merece meu sacrifício, minha dedicação. Vou pedir minha aposentadoria antecipada mesmo perdendo a metade do meu salário. Para esse Estado não trabalho mais"- desabafou sozinho.

Na viagem de volta o professor Fernando vinha matutando e pensando nos procedimentos burocráticos para pedir a antecipação de sua aposentadoria. Um filme com sua história de professor passou pela sua cabeça misturada com as imagens dos cenários e das pessoas que vira na SEDUC. De repente, deu um estalo como se uma luz tivesse acendido em sua cabeça. "Mas não é exatamente isso o que esses vampiros querem? Todo esse sistema não está organizado justamente para isso? Querem mais é que os bons desistam, querem comer o nosso cérebro, matar nossos sonhos. Só assim, o Estado ficará livre para montar seu exército de zumbis e formar uma geração de jovens alienados, imbecilizados e dóceis. Aí o serviço ficará completo e a corrupção, a iniquidade e a imoralidade prosperarão".

O professor Fernando sorriu num tom triunfal e bradou: "Só pra sacanear não vou desistir de ser professor! Só pra sacanear vou ser ainda melhor! Só pra sacanear vou ser um professor ainda mais comprometido! Só pra sacanear vou ministrar aulas mais estimulantes, vou conquistar meus alunos, os pais dos meus alunos e meus colegas professores! Só pra sacanear vou tirar um tempo das minhas aulas para dedicar aos ensinamentos dos conteúdos transversais! Vou promover mais debates sobre os direitos humanos, sobre cidadania, sobre ética, responsabilidade... e sobretudo sobre os instrumentos de alienação e dominação da classe política e do Estado! Só pra sacanear!




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