Ana, uma mulher encantadora cruza o meu caminho
24 de maio - 21ª dia de caminhada
Deixei a cidade fantasma de Foncebadón as 7h e 45m. Depois da cantoria da noite passada, dormi um pouco mais. Estou muito animado para enfrentar meu 21º dia de caminhada. Cada vez que se aproxima do final vai dando aquela euforia, aquela sensaçao de vitória, aquela vontade de chegar. Hoje o caminho é especial. Enfim, vou conhecer a legendária Cruz de Ferro. Há uns cinco dias só escuto falar na tal cruz nos albergues onde me hospedo. Parece que o objetivo maior dos peregrinos é a cruz, e nao Santiago de Compostela. Fico imaginando como será essa cruz. Na minha cabeça vem a imagem de um monumento gigantesco. Uma enorme cruz de ferro com uns 30 metros de altura próxima a uma monumental igreja. Ao seu redor visualizo todo tipo de arte sacra e artesanatos representando a passagem dos peregrinos.
Com essa curiosidade vou caminhando animado a passos largos ladeira acima. O caminho é hostil. Um dos mais difíceis do percurso. Subiremos a uma altitude de 1504 metros para depois despencarmos para 541 metros em Ponferrada. Como estou bem disposto e motivado, caminho bem, ignorando as pedras e os enormes abismos que se formam entre as montanhas. Só uma tontura me incomoda um pouco mas nao me preocupa mais. Um médico que encontrei no albergue há uns três dias atrás me falou que é normal. É o efeito colateral da altitude.
Enfim chego a tal Cruz de Ferro após uma subida que parecia nao ter fim. Nao é nada do que imaginei. O famoso monumento nao passa de um enorme mastro de madeira com uns 6 metros de altura fincado numa montanha de pedras com uns 30 metros de diâmetro com uma pequena cruz de ferro na ponta. Consta na placa ao lado que nao há confirmaçao do periodo que foi colocada lá, mas sabe-se que foi deixada pelos romanos na época da sua colonizaçao. Subo no monte de pedras para apreciá-la de perto. No mastro há todo tipo de objetos e lembranças amarradas ou pregadas. Tinha até uma bandeirinha do Brasil junta com a do Pará. Observo cada objeto alí, leio as frases escritas e fico imaginando o que cada um pensou ao passar por alí.
A Cruz de Ferro está alí, no meio do nada, numa paisagem deserta. Nao tem uma pracinha, bancos, uma igrejinha, nada. Somente a Cruz que mal conseguimos enxergar na ponta do mastro de madeira. Noto que há uma energia diferente alí. Vejo as pessoas olhando como se estivessem hipinotizadas. Alguns contemplam em silêncio, outros tiram fotos, outros se ajoelham e rezam. Todos, absolutamente todos demonstram total respeito por aquelo símbolo. Nao vi alí a algazarra rotineita dos peregrinos quando se encontram em grupos. Sinto uma alegria imensa em poder estar aqui nesse monumento tao simples e tao carregado de boas energias. Instintivamente tiro meu lenço do bolso, escrevo "LUIZ VIEIRA, PARAUAPEBAS, PARÁ, BRASIL. 24/05/13" e coloco no mastro junto com os demais objetos. Sinto que estou eternizando minha passagem por ali e ao mesmo tempo descarregando toda a energia negativa. Meu corpo está leve e tenho vontade de rezar. Assim o faço por alguns minutos.
Hora de seguir em frente. Tem muito chao até Ponferrada. Hoje tem poucos peregrinos no caminho. Muitos fazem essa etapa em duas vezes devido a dificuldade do percurso. Aumento o passo para ganhar tempo e aproveitar que estou me sentindo leve. Hoje até ousei a reduzir os curativos, pois as bolhas estao quase curadas. Depois de uns 50 minutos de caminhada após a Cruz de Ferro eis que escuto os passos que há alguns dias vem me seguindo sem que eu veja quem é. Falei disso anteriormente, lembra? Tinha certeza que estava sozinho naquele momento pois os poucos peregrinos ficaram para trás há um tempao. Decido que nao vou olhar para trás para ver no que vai dar. Caminho mais depressa, quase corro. Os passos foram se aproximando mais e mais até que vi uma sombra. Paro de repente e fico aliviado quando vejo que era uma pessoa. Olá! Tudo bem? Olá. Respondo meio nervoso. Posso lhe acompanhar um pouco? Pergunta. Si, sí, gracias. Respondo em espanhol meio encabulado. Como se lhamas? Ela me fala seu nome mas é muito difícil, um nome meio oriental, sei lá. O som do final se parece com Ana. Perdón, no entiende. Ela repete mais uma vez e continuo sem entender. É muy difícil. Posso lhamar de Ana? Pergunto. Claro! Ana é um nome muito bonito. Só aí me dou conta do ridículo. A senhora estava falando comigo num claro português e eu nem percebo. Fico me esforçando para falar em espanhol. Ah, você é brasileira? Pergunto entusiasmado. Nao. Nao sou. Olho para ela por um instante para tentar adivinhar sua nacionalidade. Era uma mulher alta, mais ou menos 1,75 de altura. Tinha a pele branca meio bronzeada, cabelos negros amarrados tipo rabo de cavalo. Uma silhueta esguia, rosto fino e aparentemente nao tinha rugas. Poderia ter tanto 40 ou 50 anos. Olhando assim nao dava para imaginar. Nao se parecia com uma peregrina, ou pelo menos nao se vestia como uma. Nao carregava mochila nem cajado. Vestia uma saia comprida que nem me lembro a cor, e um blusao bege se nao me engano. Uma mulher sem dúvida muito bonita e jovial, mas uma beleza diferente. Tinha um sorriso aberto e algo de maternal. Fiquei intrigado e ao mesmo tempo gostei de sua presença. Seria uma boa companhia para a caminhada do dia.
Apesar de tê-la observado para ver se adivinhava a nacionalidade daquela mulher estranha que falava tao bem o português, nada me veio a cabeça. Lembrei de um alemao que encontrei no albergue de San Jean Pied que falava o português tao bem que facilmente se passaria por um catarinense. Se você nao é brasileira, de onde...Quando tentei perguntar fui interrompido por uma observaçao de Ana. Você está andando errado. Disse sorrindo. Como? Venho seguindo as setas amarelas. Respondo preocupado. Nao, nao estou falando do caminho, mas o jeito que você está andando. Ah sim. Respondo aliviado. Como é que se anda entao? Ela me pede que eu tire a mochila das costas e lhe entregue. Fico com um pouco de receio e penso na possibilidade de estar sendo enganado. Ela me olha com uma expressao de reprovaçao como se estivesse adivinhando meus pensamentos. Bobagem. Com a cara que fiz, nao é preciso ser adivinho para saber que estava com medo. Tiro a mochila das costas e entrego-a. Uau! O que voce carrega aqui, é pedra? Pergunta sorrindo. Nao. É comida. É que passei fome na caminhada de ontem. Respondi meio envergonhado. Nao se preocupe em carregar comida. Você nao vai mais passar fome. Falou com autoridade. Como sabe disso? Pergunto. É que daqui até Santiago tem muitos povoados. Nao é tao deserto como o trecho anterior.
Ana coloca minha mochila nas costas, toma meu cajado e começa a andar na minha frente meio corcunda, desengonçada e espalhafatosa. Acho engraçado e sorrio. Ah, você está achando graça? Pois venho lhe observando e é exatamente assim que você está andando. Eu? Perguntei meio encabulado. Você está andando como se estivesse procurando uma moeda no chao e está batendo com o seu cajado como se estivesse com raiva das pedras. Assim você gasta muita energia e vai chegar arrasado em Santíago. Fico intrigado com aquela observaçao. Era exatamente assim que eu estava andando. Havia ganhado um hábito de ficar batendo meu cajado nas pedras. Era uma coisa fora do controle. Quando percebia lá estava eu golpeando as coitadas. Meu cajado já estava todo gasto e já havia soltado uma parte.
Agora observe que vou lhe mostrar como se caminha. Primeiro você tem que olhar para o horizonte. O que você busca nao está no chao. Está lá na frente. Falou apontando com o cajado. E o cajado, é como se fosse uma terceira perna. Se você segura com a mao esquerda, ele deve acompanhar a perna direita ou vice-versa. Ande com passos mais curtos e rápidos. Nao estique muito as pernas. Curto e rápido. E olhe a respiraçao! Enquanto passava as instruçoes Ana andava com uma leveza que parecia flutuar. Fiz um grande esforço para imitá-la e senti a grande diferença. Depois de alguns minutos ela me devolveu a mochila e o cajado e disse: vamos lá. Quero ver se aprendeu. Começei a caminhar com a coluna reta, passos curtos e olhando para frente. Isso! Sente a diferença? Lembre-se: olhe sempre para o horizonte. Caramba, e nao é que funciona? Como é que nao aprendi isso antes? Cada coisa ao seu tempo. Setenciou Ana sorrindo.
Continuamos a caminhar por horas. Conversamos sobre um monte de coisas: filosofia, religiao, política, crise econômica espanhola, família. Ana é uma mulher incrível! Parece ser jovem mas fala com autoridade e sabedoria de quem já viveu muito. Decido tratá-la somente por senhora, dado o grau de sua experiência. Qualquer dia vou escrever sobre o que conversamos. Tomo coragem e peço para tirar uma foto para levar de lembrança para o Brasil. Ela diz: nao, nao. Foto nao! Guarde as lembranças aqui ó. Fala tocando com os dois dedos em minha testa. Nao insisto. Lembrei do meu pai -seu Terêncio. Há alguns anos atrás nao tinha quem fizesse ele tirar uma foto, e ninguém se atrevia a tirar na surdina. Hoje ele está moderno. Faz até pose para a câmera.
Desculpe, mas a senhora ainda nao me falou de onde é. Mais uma vez fui interrompido. Foi um grande prazer lhe conhecer Luiz Vieira. Gostei muito da sua companhia. E lembre-se: olhe sempre para o horizonte. E nao seja tao perfeccionista. Ísso afasta as pessoas de você. Exercite mais sua tolerância. Já? Mais para onde a senhora está indo? Esse é o meu caminho. Falou apontando para uma estradinha a esquerda antes de Ponferrada. Me deu um abraço afetuoso e tomou o caminho a esquerda. Fiquei alí parado observando-a para ver se nao ia virar uma nuvem e desaparecer. Que ridículo! Caminhou até sair do meu campo de visao numa curva da estrada.