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segunda-feira, 27 de agosto de 2018

HÁ UMA TRAGÉDIA SILENCIOSA EM NOSSAS CASAS

Luis Rojas Marcos*

Há uma tragédia silenciosa que está se desenvolvendo hoje em nossas casas e diz respeito às nossas joias mais preciosas: nossos filhos. Nossos filhos estão em um estado emocional devastador! Nos últimos 15 anos, os pesquisadores nos deram estatísticas cada vez mais alarmantes sobre um aumento agudo e constante da doença mental da infância que agora está atingindo proporções epidêmicas.

As estatísticas:

-1 em cada 5 crianças tem problemas de saúde mental;
-um aumento de 43% no TDAH foi observado;
-um aumento de 37% na depressão adolescente foi observado;
-um aumento de 200% na taxa de suicídio foi observado em crianças de 10 a 14 anos.

O que está acontecendo e o que estamos fazendo de errado?

As crianças de hoje estão sendo estimuladas e superdimensionadas com objetos materiais, mas são privadas dos conceitos básicos de uma infância saudável, tais como:
-pais emocionalmente disponíveis;
-limites claramente definidos;
-responsabilidades;
-nutrição equilibrada e sono adequado;
-movimento em geral, mas especialmente ao ar livre;
-jogo criativo, interação social, oportunidades de jogo não estruturadas e espaços para o tédio.

Em contraste, nos últimos anos as crianças foram preenchidas com:

– pais digitalmente distraídos;
– pais indulgentes e permissivos que deixam as crianças “governarem o mundo” e sem quem estabeleça as regras;
– um sentido de direito, de obter tudo sem merecê-lo ou ser responsável por
obtê-lo;
– sono inadequado e nutrição desequilibrada;
– um estilo de vida sedentário;
– estimulação sem fim, armas tecnológicas, gratificação instantânea e ausência de momentos chatos.

O que fazer?

Se queremos que nossos filhos sejam indivíduos
felizes e saudáveis, temos que acordar e voltar ao básico. Ainda é possível! Muitas famílias veem melhorias imediatas após semanas de implementar as seguintes recomendações:
– Defina limites e lembre-se de que você é o capitão do navio. Seus filhos se sentirão mais seguros sabendo que você está no controle do leme.
– Oferecer às crianças um estilo de vida equilibrado, cheio do que elas PRECISAM, não apenas o que QUEREM. Não tenha medo de dizer “não” aos seus filhos se o que eles querem não é o que eles precisam.
– Fornecer alimentos nutritivos e limitar a comida lixo.
– Passe pelo menos uma hora por dia ao ar livre fazendo atividades como: ciclismo, caminhadas, pesca, observação de aves/insetos.
– Desfrute de um jantar familiar diário sem smartphones ou tecnologia para distraí-lo.
– Jogue jogos de tabuleiro como uma família ou, se as crianças são muito jovens para os jogos de tabuleiro, deixe-se guiar pelos seus interesses e permita que sejam eles que mandem no jogo.
– Envolva seus filhos em trabalhos de casa ou tarefas de acordo com sua idade
(dobrar a roupa, arrumar brinquedos, dependurar roupas, colocar a mesa, alimentação do cachorro etc.).
– Implementar uma rotina de sono consistente para garantir que seu filho durma o suficiente. Os horários serão ainda mais importantes para crianças em idade escolar.
– Ensinar responsabilidade e independência. Não os proteja excessivamente
contra qualquer frustração ou erro. Errar os ajudará a desenvolver a resiliência e a aprender a superar os desafios da vida.
– Não carregue a mochila dos seus filhos, não lhes leve a tarefa que esqueceram, não descasque as bananas ou descasque as laranjas se puderem fazê-lo por conta própria (4-5 anos). Em vez de dar-lhes o peixe, ensine-os a pescar.
– Ensine-os a esperar e atrasar a gratificação.
Fornecer oportunidades para o “tédio”, uma vez que o tédio é o momento em que a criatividade desperta. Não se sinta responsável por sempre manter as crianças entretidas.
– Não use a tecnologia como uma cura para o tédio ou ofereça-a no primeiro segundo de inatividade.
– Evite usar tecnologia durante as refeições, em carros, restaurantes, shopping centers. Use esses momentos como oportunidades para socializar e treinar cérebros para saber como funcionar quando no modo “tédio”.
– Ajude-os a criar uma “garrafa de tédio” com ideias de atividade para quando estão entediadas.
– Estar emocionalmente disponível para se conectar com crianças e ensinar-lhes autorregulação e habilidades sociais.
– Desligue os telefones à noite quando as crianças têm que ir para a cama para evitar a distração digital.
– Torne-se um regulador ou treinador emocional de seus filhos. Ensine-os a reconhecer e gerenciar suas próprias frustrações e raiva.
– Ensine-os a dizer “olá”, a se revezar, a compartilhar sem se esgotar de nada, a agradecer e agradecer, reconhecer o erro e pedir desculpas (não forçar), ser um modelo de todos esses valores.
– Conecte-se emocionalmente – sorria, abrace, beije, faça cócegas, leia, dance, pule, brinque ou rasteje com elas.

* É um psiquiatra, pesquisador e professor espanhol, nacionalizado norte-americano. Dá aulas de psiquiatria na Universidade de Nova York e é membro da Academia de Medicina de Nova York e da Associação Americana de Saúde Pública. 

terça-feira, 21 de agosto de 2018

SALVE, SALVE RAUL - O DIA EM QUE O MALUCO BELEZA PARTIU

Compartilho com os leitores esse texto, que está no meu livro "O Escorpião e a Borboleta". Prepare-se para se emocionar.


Eterno Maluco Beleza


Hoje, 21 de agosto de 2014, completamos 25 anos desde a morte de Raul Seixas. Sempre nessa data sinto uma tristeza, uma nostalgia e ao mesmo tempo, sinto alegria de ter tido o privilégio de conviver com a obra de Raul na minha infância e juventude. Nossa geração teve esse privilégio e a geração dos meus filhos nunca terá. Jamais existirá outro Maluco Beleza. Qualquer imitação não chegará a ser nem um borrão do que foi a mente mais brilhante, mais instigante que o século XX já conheceu.

Acordei decidido a escrever um texto inédito para homenagear esse ícone da música brasileira. Enquanto pensava no que escrever senti uma sensação estranha. De repente senti um comichão na espinha dorsal, meus olhos embaçaram e um calor tomou conta do meu corpo. Frases do Raul brotaram automaticamente do meu cérebro enquanto meus olhos vertiam em lágrimas. Não sei de onde surgiram tantas frases e tantas lágrimas. Tive certeza que Raul estava aqui me "dando o toque". Então decidi abandonar as pesquisas e escrever apenas o que saia da cabeça. Foi muito fácil. As músicas do Raul são histórias vivas, vibrantes que mostram o homem que foi e o que queria ser. Espero que todos os malucos belezas curtam.

Raul Rebeldia


"Faze o que tu queres há de ser tudo da lei. Viva! Viva"! (Sociedade Alternativa). Raul Seixas já nasceu rebelde. Garoto inquieto, desde cedo começou a rabiscar suas primeiras músicas. Compôs Metamorfose Ambulante aos 14 anos de idade. Baiano de classe média, não queria seguir o figurino dos outros meninos de sua idade. Resolveu botar para quebrar e quebrar todos os paradigmas da sua época. 

Na escola Raul Seixas não teve boas experiências. Reprovou por várias vezes na segunda série. Seu pai tentou até um colégio religioso mas não surtiu efeito. Ele próprio falava que na escola não achava o conhecimento que buscava. Ao invés de estudar, gastava grande parte do tempo ouvindo rock and rool na loja Cantinho da Música. O que aprendeu foi com a música, com os livros e com as experiências das ruas. Um leitor voraz, influenciado pelo pai Raul Varella que tinha uma vasta biblioteca, devorava toda espécie de livros, mas se interessava particularmente por filosofia. Quando adulto, resolveu provar para o pai que estudar era apenas um detalhe, que tinha inteligência, mas que a escola careta não era suficiente. Fez vestibular e passou para direito. Estudou até dar um diploma ao pai. A partir daí se dedicou exclusivamente a sua maior paixão: a música.

Além da música sociedade alternativa, mosca na sopa mostra esse espírito inquieto, insubordinável e contestador. "Eu sou a mosca que perturba o seu sono, eu sou a mosca no seu quarto a zumbizar. E não adianta vim me dedetizar, pois nem o DDT pode assim me exterminar, se você mata uma e vem outra em meu lugar". (Mosca na Sopa). Raul é assim. Espírito rebelde que incomoda, que derruba a ordem, que sacode o comodismo, que escancara a hipocrisia e expõe a verdade nua e crua de forma desconcertante. 

Com a música Cowboy fora da lei ele dispara: "Mamãe não quero ser prefeito, pode ser que eu seja eleito e alguém pode querer me assassinar. Eu não preciso ler jornais, mentir sozinho eu sou capaz, não quero ir de encontro ao azar". Aqui ele debocha do poder de cartas marcadas.  Sua sociedade alternativa não tinha espaço para poder, para opressão. Era um anarquista convicto. 

Na música As Aventuras de Raul Seixas na cidade de Thor, Raul critica o sistema capitalista e expõe suas armadilhas. "Tá rebocado meu compadre, como os donos do mundo piraram. eles já são carrascos e vítimas do próprio mecanismo que criaram. O monstro SIST (sistema) é retado, e tá doido pra transar comigo. E sempre que você dorme de touca ele fatura em cima do inimigo". Com sua irreverência falou de forma simples e bem humorada o que filósofos, economistas e sociólogos não conseguiram.


Meu amigo Raul era assim. Nunca se acomodou, nunca se entregou."Tente, e não diga que a vitória está perdida. se é de batalhas que se vive a vida, tente outra vez". (Tente outra vez). Mesmo quando estava no auge do sucesso nunca se acomodou e desprezou os princípios burgueses-classe-média. "Eu devia estar contente porque tenho um emprego, sou o dito cidadão respeitável e ganho quatro mil cruzeiros por mês". (Ouro de tolo). E segue sempre em frente falando:"Não pare na pista, é muito cedo pra você se acostumar. Amor não desista, se você para o carro pode te pegar". (Não pare na Pista). Além de nos induzir a seguir em frente, Raul nos convida a ousar, a buscar o novo, a exercitar a curiosidade. "Na curva do futuro muito carro capotou, talvez por causa disso é que a estrada ali parou. Porém atras da curva perigosa eu sei que existe, alguma coisa nova, mais vibrante e menos triste" (A Verdade Sobre a Nostalgia).


Rebelde sim, mas nunca insensato. Como Raul já dizia: "conserve seu medo, mantenha ele aceso. Se você não teme, se você não ama, vai acabar cedo(...) conserve seu medo mas sempre ficando sem medo de nada, porque desta vida, de qualquer maneira não se leva nada".(Conserve Seu Medo).

Raul Seixas - família

Rabisco do Blogger em 1993

Já vimos que como filho foi rebelde mas sereno. O maior gesto de amor foi parar um tempo para estudar e dar um diploma de advogado ao pai, realizando assim o sonho do velho Raul Varella. Amou muito sua família, principalmente seu pai e sua mãe. Já maduro, após vários casamentos e relacionamentos, falou (cantou) a seguinte pérola:"Eu tive que perder minha família para perceber o benefício que ela me proporcionava. É triste aceitar esse engano quando já se esgotaram as possibilidades. E agora sofro as atitudes que tomei por acreditar em verdades ignorantes...Não respeitei o sacrifício que custa para construir a fortaleza que se chama família..." (Diamante de Mendigo).

Raul Seixas era um amante insaciável. Em uma anotação no seu diário pessoal escreveu: "Eu como marido sou uma merda total. Como Raul Seixas sou um homem ideal". Raul teve cinco esposas, além das várias mulheres com quem se relacionou extra-oficialmente. Seu estilo de vida não era para casamento, mas amou cada uma das suas mulheres intensamente. Na música Medo da Chuva define bem esse perfil: "É pena que você pense que sou seu escravo, dizendo que sou seu marido e não posso partir. Como as pedras imóveis na praia eu fico ao seu lado sem saber dos amores que a vida me trouxe e eu não pude viver". Na música A Maçã Raul demonstra um desejo de um relacionamento aberto, sem censura, sem amarras e sem dominação. "Se esse amor ficar entre nós dois, vai ser tão pobre amor, vai se gastar...Quando eu te escolhi para morar junto de mim, eu quis ser tua alma, ter seu corpo tudo enfim. Mas compreendi que além de dois existem mais. Amor só dura em liberdade, o ciúme é só vaidade, sofro mas eu vou te libertar. O que é que eu quero se eu te privo do que eu mais venero que é a beleza de deitar".

Mesmo distante devido sua rotina, Raul Seixas foi um pai amoroso e influente. Na música Cantiga de Ninar consegue expressar toda sua ternura paterna e amor na forma mais pura e bela: "Dorme enquanto teu pai faz músicas, que é a forma dele rezar. Todos os sonhos na realidade são verdades, se eu puder cantar... Fiz meu rumo por essa terra, entre o fogo que o amor consome. Eu lutei mas perdi a guerra, eu só posso te dar meu nome".

Raul eterno


"Eu sei que determinada rua que já passei não tornará a ouvir o som dos meus passos, tem uma revista que eu guardo há muitos anos, e que eu nunca mais eu vou abrir; Cada vez que eu me despeço de uma pessoa, pode ser que esta pessoa esteja me vendo pela última vez; a morte, surda, caminha a meu lado e eu não sei em que esquina ela vai me beijar... " (Canto para Minha Morte).
E foi assim. No dia 21 de agosto de 1989 a morte beijou Raul Seixas, nosso eterno Maluco Beleza. Sozinho em seu apartamento sem  testemunhas embarcou num disco voador e partiu para outra dimensão. O Planeta Terra já estava pequeno e ultrapassado para uma mente tão além do seu tempo. Agora só nos resta cantar: "Hoje é feriado é o dia da saudade! Hoje é feriado é o dia da saudade!" (O dia da Saudade).

sexta-feira, 17 de agosto de 2018

O ESCRITOR VOLTA A EMPUNHAR A ESPADA (CANETA)

Olá meus caros leitores. Tanto tempo sem postar nada aqui e resistindo as cobranças. De vez em quando é bom se ausentar um pouco para repensar conceitos e rever prioridades. E uma das minhas prioridades será mudar minha linha editorial. Deixar de escrever jamais, pois seria o mesmo que deixar de respirar. 

Após o processo de formação em Coach Integral Sistêmico que passei, muitas coisas mudaram. Sinto-me mais confiante, renovado e apaixonado por essa nova profissão. Assim, minha escrita tem que ser mais útil e voltada para ajudar pessoas a crescerem e se desenvolverem.

Inicio oferecendo a vocês um pequeno trecho do meu livro sobre o Caminho de Santiago de Compostela que ainda não tem título. Ainda está em fase de conclusão e em dezembro será lançado para todo o Brasil.

Sente-se, relaxe e venha voar comigo. Boa leitura.


Um papo reto com Ana

Eis a questão. Você é águia e não pode fugir disso. Olhando para o horizonte você enxerga o todo, enquanto as pessoas comuns olham apenas para baixo e sentem medo, veem apenas as pedras.

            - Qual a razão de você sair do seu país e estar aqui caminhando nessa terra estrangeira sem ao menos dominar a língua? – Ana perguntou-me, parando em minha frente e olhando nos meus olhos deixando-me encabulado.
            - Não sei. Francamente não sei. Dias atrás, responderia que buscava aventura. Agora já não sei mais o que busco – respondi desviando o olhar.
            - Não seja tímido meu bom peregrino. Busque no seu coração. Esqueça um pouco a razão e pergunte ao seu subconsciente. Verás que você não veio se aventurar aqui por acaso. Há uma força que moveu você até aqui e você terá que descobrir, para que tudo isso tenha sentido.
            - Já passei por tanta coisa nesse caminho que nem sei mais o que é real ou o que é ilusão – falo contendo o desejo de falar-lhe sobre os passos misteriosos que me seguiam até ela aparecer. No fundo sinto medo de passar por ridículo ou de descobrir que aquela mulher não passa de uma miragem, um fantasma em meu caminho.
            Desde que encontrei-me com essa mulher de nome estranho, a qual chamo de Ana, passamos a conversar como se fôssemos dois velhos conhecidos. Depois que ela me ensinou a usar o cajado de forma correta e andar a passos curtos, sempre olhando para frente, meu caminho tornou-se mais suave. Porém, o mais agradável foi a conversa. Ana abordava diversos e variados temas com a autoridade e a segurança de uma pessoa que já vivera mil anos. E o seu tom de voz não tinha nada de arrogante e nem de intimidador. Falava com franqueza, com a sabedoria de uma mestra, e através de perguntas diretas, deixava-me a vontade para expor meu ponto de vista. Tive o desejo de caminhar sem parar ao seu lado até chegar a Santiago de Compostela. Certamente, aprenderia muitas coisas e tornar-me-ia uma pessoa melhor.
            - Às vezes meu amigo, o real e o ilusório se misturam em nossa mente só para aguçar os nossos sentidos. Veja essa natureza! Isso se parece real para você? Toda essa paisagem que estava coberta de gelo há poucos dias, logo estará totalmente diferente, como uma ilusão de ótica. Essas folhas vão cair e um calor sufocante substituirá esse clima frio. Isso lhe parece real?
            - Realmente, tudo isso parece loucura. É impressionante que já passamos milhões de anos e os homens ainda não chegaram a uma conclusão sobre o autor dessa obra. Cientistas estudados e referendados, religiosos e outros intelectuais ainda divergem sobre as diversas teorias da criação – falo confuso.
            - Agora você está demonstrando seu lado filosófico – comentou lisonjeira. - Mas, o mais importante não é ficar se perguntando quem fez tudo isso. A busca por essa resposta já causou guerras sangrentas e inúteis em nome de Deus, já causou sofrimento e intolerância a pessoas com boas e más intenções. O importante é admirar e usufruir dessa obra tão perfeita que é a natureza. É respeitar e preservar acima de tudo. O Deus criador está dentro de você, está nas suas crenças, está nas suas virtudes. E essa fagulha divina faz com que você respeite todas as formas de manifestações de fé e não veja apenas a sua como verdadeira.
            - Quanto a isso, estamos de acordo. Também repudio qualquer forma de intolerância, principalmente a religiosa. E sobre a sua pergunta sobre o que me trouxe ao caminho, aos poucos estou descobrindo que busco a minha identidade. Já estou próximo de chegar a meio século de vivência e às vezes sinto-me bem confuso quanto a minha personalidade.
            - Explique melhor – instiga Ana interessada.
            - É que às vezes sinto-me um ET no meio das pessoas. Tudo o que aprendi sobre valores humanos, sobre honestidade, solidariedade, ética, parece que não têm nenhum valor hoje em dia. A impressão é que tenho que desaprender tudo para me encaixar na realidade das pessoas e ser aceito pelo grupo – divago.
            - Sei como é isso. No meio de tantas imperfeições, no meio de tantas nulidades temos a sensação de que estamos errados e que os tolos estão certos. Aí sentimo-nos isolados, discriminados – destaca Ana com um semblante sério.
            - Por isso, muitas vezes pergunto se não estou errado e a maioria está certa. Sempre que agi de forma correta, sempre que segui os parâmetros que acredito serem corretos, consegui desagradar muito mais. Noto que as pessoas que vivem sob uma ética mais subjetiva, que aplicam o famoso, como se diz no meu país, o “jeitinho brasileiro”, os que cometem alguma irregularidade, conseguem agradar mais e agregar mais pessoas.
            - Bem-vindo ao clube Luiz Vieira. Você não é o único que se sente assim e não será o último. Em uma sociedade construída sob a ótica do “ter” e que ignora o “ser”, pessoas como você terão que pagar o preço. E tenho certeza que você sempre pagará, pois, por mais que tente, não conseguirá ser outra pessoa. Duvido que descobrirá após trilhar o Caminho de Santiago que deve se tornar mais um medíocre só para se encaixar na sociedade!
            - É isso que pergunto-me o tempo todo Ana. Fico confuso e achando que não vale a pena pensar e agir corretamente e ao mesmo tempo desagradar a tanta gente – questiono indignado.
            - Como disse, você não é o único e nem será o último Luiz. Sem querer fazer nenhuma comparação lembre-se de Nelson Mandela, Martin Luther King, Sócrates, Tiradentes (no seu país), Jesus e o próprio São Tiago e tantos outros. Eles viveram em conflitos e foram perseguidos e mortos por serem pessoas que pensavam além do seu tempo. Se eles tivessem se acovardado e recuado como muitos fazem, a história não seria a mesma.
            - Mas eu não quero ser herói e nem mártir – protesto assustado com a dimensão.
            - Essas pessoas que eu citei também não queriam. Suas mortes foram apenas frutos da intolerância, da ignorância, da estupidez. Foram vítimas do contexto histórico de suas épocas. No entanto, percebe que elas nunca morreram? Continuam vivas em nossos pensamentos e influenciam o comportamento de várias gerações. Ao contrário daquela gente que matou seus heróis e continuam matando até hoje, e não passam de cadáveres andantes, de gente morta que fala, que anda e que respira um ar fétido.
            - Isso quer dizer que vivemos entre mortos?
            - De certa maneira sim. Só que temos uma missão de trazer esses mortos à vida, de proporcionar o milagre da ressurreição todos os dias. E esse milagre acontece exatamente quando homens e mulheres como você têm a coragem de difundir ideias, pensamentos novos, de promoverem a transformação, de se inquietarem com as injustiças, de se rebelarem contra a hipocrisia, de buscarem a paz verdadeira. Essa é a nossa missão mais bela e contraditória – esclarece Ana sempre com uma aura de sensatez.
            - Contraditória? Como assim? – pergunto confuso.
            - Exatamente. Nós precisamos ressuscitar os mortos e os mortos querem continuar mortos e acabam nos engolindo – fala de uma forma enigmática enquanto me puxa pelo braço para um desvio no caminho que leva à beira de um precipício. Para perigosamente bem próximo a um despenhadeiro e me pede para que eu observe atentamente o horizonte sem olhar para baixo. Não resisto, olho para baixo e sinto vertigem. Ana segura meu braço com mais força e ordena vigorosamente: - Eu disse para não olhar para baixo. Olhe apenas para frente.
            Concentro-me e fixo os olhos no horizonte. Aos poucos vou relaxando e esqueço o medo. No início, pensei na possibilidade de ser empurrado ali por aquela estranha. Agora sinto a confiança na mão que segura fortemente meu braço esquerdo e entrego-me completamente àquela sensação.
            - Agora feche os olhos Luiz. Solte sua respiração e procure enxergar o que viu antes, só que agora com os olhos fechados – ordena num tom solene.
            Obedeço e concentro-me nesse exercício. No início não consigo ver nada além da escuridão. Aos poucos, aquela imagem vai aparecendo em minha cabeça, só que de outro formato. É como se eu estivesse assistindo a um filme em três “D”. Vejo uma cadeia de montanhas, algumas plantações, algumas casas ao longe, bosques coloridos e uma trilha que se parece uma linha disposta em caracol.
            - Pode descrever o que está vendo Luiz? – pergunta Ana numa voz branda.
            Descrevo em detalhes a bela paisagem que consigo visualizar.
            - Agora abra os braços – ordena enquanto solta meu braço esquerdo. – Sinta o vento batendo em seu corpo. Continue com os olhos fechados e voe por essa paisagem.
            Meus pensamentos voam e sinto meu corpo flutuar. Meus pés continuam firmes no chão à beira daquele precipício, mas tenho a sensação de estar planando, vendo tudo de cima, indo em direção ao infinito. Não sei por quanto tempo voei, mas sei que foi a melhor sensação que senti e queria continuar com aquela viagem. Voltei à realidade quando Ana segurou novamente meu braço e puxou-me para trás.
            - Você me descreveu uma bela paisagem enquanto voava. E agora, olhe para o chão e diga-me o que vê.
            - Vejo apenas pedras e uma paisagem árida.
            - Eis a questão. Você é águia e não pode fugir disso. Olhando para o horizonte você enxerga o todo, enquanto as pessoas comuns olham apenas para baixo e sentem medo, veem apenas as pedras – fala com um sorriso iluminado.
            - Sou águia – repito convencido.
            - Sim. Alce sempre seu voo, mas não com o objetivo de enxergar as coisas de cima para baixo, mas para enxergar o todo, o conjunto. Assim, cada vez mais desenvolverá sua capacidade, seu autoconhecimento, e aprenderá a conviver com as diferenças. Não adianta querer ser como quem vive na superfície da mediocridade que você não vai conseguir. Você é o que é – sentenciou.
            - Isso quer dizer que eu não posso mudar? – pergunto confuso.
            - Claro que pode. Somos seres em constante mudança. Até a natureza muda, se transforma a cada segundo. Imagine nós que somos parte dessa natureza! Mas observe que mesmo com as constantes transformações, a essência da natureza é, e sempre será a mesma. Mesmo tendo que se adaptar às condições climáticas, uma árvore sempre utilizará suas raízes para absorver os nutrientes e para se fixar à terra. E isso nunca muda, pois essa é a sua essência. Se não fosse assim, não seria árvore.
            - Isso é muito profundo Ana. Nunca tinha ouvido ou pensado em tal reflexão. Mas convenhamos, é muito difícil e doloroso ter visão de águia em terra de cegos.
            - Com o tempo você vai aprendendo a assumir essa posição até que não será mais doloroso. Se contente com um passo de cada vez, seja menos rigoroso consigo mesmo, tenha mais paciência com as pessoas que não nasceram com o privilégio de enxergar como as águias. E lembre-se: você é o que é e os outros são o que são. Com um pouquinho de paciência você vai irradiando sua luz e vai ajudando a ressuscitar muitos “cadáveres” – fala puxando-me pelo braço de volta ao caminho.
            Caminhamos por alguns minutos em silêncio. Depois tive o pressentimento de que aquela mulher não ficaria muito tempo comigo. Então resolvi explorá-la mais um pouco e extrair todo o néctar do conhecimento. Conversamos longamente sobre vários assuntos, os quais prefiro guardar comigo, ou quem sabe, divulgarei daqui a alguns anos, quando sentir que minha geração estará mais preparada. Por enquanto, guardo seus ensinamentos e aos poucos vou digerindo. Sou águia e não posso fugir dessa missão, por mais que não seja compreendido.

            Enfim, nossa caminhada chegou ao fim numa encruzilhada do caminho, próximo a Ponferrada onde nos despedimos. Sigo sozinho, mas com a sensação de que Ana sempre estará comigo. De vez em quando escuto sua voz me dando conselhos ou toques.