Para que ficar perdendo tempo escrevendo sobre o escárnio dos nossos vereadores e nosso digníssimo prefeito? Seria melhor escrever um conto de pornochanchada. Nossas autoridades há muito perderam o senso do ridículo, perderam o medo da justiça e, acima de tudo, confiam plenamente na impunidade e na memória curta do povo. Afinal, eles imaginam que para a reeleição só precisam de um elemento: grana.
O despudor, a imoralidade, a falta de princípios venceram a decência. A razão foi sucumbida pela inescrupulosidade. Se estivéssemos tratando de religião diríamos que o diabo venceu a guerra e o pastor vendeu suas ovelhas.
Então não vou escrever sobre a sessão de ontem (21/12/2015). Apenas vou compartilhar essa crônica que está no meu livro "O escorpião e a borboleta. Prestem bem atenção. Qualquer semelhança será mera coincidência. Será?
Ah, antes que eu esqueça, por favor, sem generalizar, ok?!
Quem tiver preguiça de ler, vá logo para a parte final: O guardião da caixa forte e o segredo da mala preta.
O PÂNTANO AZUL
No fundo, Mestre
Sist sabia que aquele lugar era apropriado para desnudar os mais íntimos e
originais sentimentos do ser humano. Toda a personalidade, todos os desejos
inconfessáveis, todas as luxúrias e ganâncias do ser humano apareciam de forma
cristalina quando ele mergulhava no pântano.
Num distante reino localizado numa
próspera região dos confins da terra, havia um misterioso pântano azul. Ele
ficou assim conhecido porque era envolvido por uma intensa e brilhante
luminosidade de tom azul claro, mas tão forte que cegava quem ousasse a olhar
diretamente para ele. Esse pântano era cercado de histórias e magias e ninguém
sabia o que era real ou o que era lenda. A própria luz que irradiava já era
bastante para reforçar o mistério que envolvia o lugar.
O pântano azul despertava nas pessoas
os instintos mais selvagens e primários que o ser humano já experimentara.
Havia um magnetismo que atraía o olhar e atenção de todos, e, mesmo sendo
totalmente desconhecido e misterioso, a população daquele reino vivia tentando
entrar no local e desvendar seus mistérios. Corria o boato que quem ousara
entrar no pântano fora transformado numa espécie de andrógeno e perdera todas
as características humanas. As histórias que corriam de boca em boca e se
espalhavam como rastilho de pólvora atribuíam ao pântano todas as deformidades
do ser humano. Se alguém enlouquecia era porque havia mergulhado no pântano;
alguém começava a mentir ou perder a vergonha, com certeza esteve no pântano
azul; se o elemento era ladrão, atribuía ao pântano; Zezinho era saudável e
está sendo corroído por uma misteriosa doença, depois de ter mergulhado no
pântano; Mariazinha era uma mulher direita, boa mãe, boa esposa, religiosa
fervorosa, e agora anda roubando, mentindo e enganando as pessoas. Culpa do
pântano; fulano era feliz e agora está morrendo de depressão, depois de uma
curta temporada no pântano.
Mesmo com todas as desgraças e
malefícios atribuídos ao pântano azul, inexplicavelmente todos queriam entrar
lá. Ninguém sabia explicar tal magnetismo e tamanho poder que aquela luz azul
tinha a ponto de atrair loucamente quem estava fora e manter preso quem
conseguia entrar. O fato é que os agraciados pelo grande mestre do pântano azul
se debilitavam moral e fisicamente em pouco tempo. Reclamavam, choravam, se
lastimavam por ter entrado ali, mas inexplicavelmente queriam permanecer e
quando chegava o período de sair do pântano fazia todo tipo de sacrifício para
ali permanecer. Alguns vendiam a própria mãe e até a alma ao
diabo, a fim de permanecer por mais tempo no que eles próprios chamavam de
“inferno azul”.
O que estava por
trás de tanto mistério? Que segredos eram guardados no pântano azul? Como
penetrar naquele local tão protegido, tão temido e tão cobiçado por tanta
gente? O que de fato existia por trás daquela misteriosa luz azulada, tão forte
que impedia os curiosos de se aproximarem? Do que era composta aquela matéria
tão bela, tão preciosa e tão atraente? Que magnetismo era esse que atraía a
atenção de todos, mesmo com tantas deformidades que causavam no ser humano?
Esse é um segredo que todos tentam desvendar e até o momento não foi possível,
pois quem sai do pântano azul sai com o cérebro tão deformado que não diz coisa
com coisa e nem desperta a credibilidade em ninguém. Por enquanto, ainda estão
tentando preparar uma mente privilegiada e superior que seja capaz de mergulhar
no pântano, desvendar seus mistérios e sair incólume para contar a todos. Por
enquanto, estão só tentando (...)
O
grande mestre do pântano azul
O pântano azul com seus mistérios e
segredos era guardado e protegido pelo Grande Mestre Sist. Ele era um ser
enigmático e tão misterioso quanto o pântano que guardava. Despertava nas
pessoas uma mistura de medo, pavor, asco, admiração, inveja, respeito,
repugnância e outros sentimentos contraditórios. Ninguém sabia de onde vinha
seu poder e muito menos a quem servia. O fato é que mantinha forte influência
sobre todos e ditava as regras dentro e fora do pântano azul. As pessoas viviam
cercando-o em busca de orientações, de favorecimentos e de suas
bênçãos para se aproximarem do temido pântano.
Mestre Sist cuidava
para que os segredos que envolviam aquele lugar ficassem guardados a sete
chaves. Dizia de forma lacônica que todos precisavam do pântano para
manter o equilíbrio, o controle e a ordem entre os homens que viviam em
sociedade. Assim, organizava um complexo sistema de escolha a cada quatro anos,
onde um grupo de “sortudos”, após passar por duras provas, era “abençoado” e
recebia a autorização para penetrar no pântano azul e desfrutar dos seus
misteriosos benefícios.
A cada período de escolhas, Mestre
Sist cuidava para que um maior número de pessoas se habilitasse
para a grande disputa. Assim, atribuiria mais importância ao evento. Apesar do
temor, dos mistérios, das histórias tenebrosas, das deformidades que causavam
no ser humano, havia uma força que atraía
as pessoas para aquele lugar. No geral, costumavam aparecer até duzentas vezes
mais candidatos do que o número de vagas ofertadas. Esses candidatos
precisavam passar por um teste até mesmo para se habilitarem
para a disputa e os critérios eram cada vez mais rigorosos. Dizia-se
que para se candidatar para fazer parte do Conselho do Pântano era preciso ter
coragem, ter muito dinheiro e pouco escrúpulo.
Algumas características eram mais
exigidas aos candidatos para o Grande Conselho do Pântano. Teriam que ter muita
habilidade, muito poder de convencimento, muita astúcia, muito poder de sedução
e, principalmente, a capacidade de mentir e enganar o maior número de pessoas
sem que ninguém percebesse. Além disso,
teriam que contar com padrinhos influentes e fazer parte de uma organização que
lhe concedesse o registro que legitimava o indivíduo para a disputa. O período
da disputa era longo e penoso para provar a resistência dos postulantes. Apesar
de o Mestre Sist fazer parecer que havia regras bem definidas, na verdade
o jogo era um grande vale tudo com muita manipulação.
Os envolvidos agiam como fantoches e
acreditavam estar fazendo parte de um jogo aberto onde teriam que mostrar suas
espertezas e qualidades. Assim, faziam de tudo: mentiam, roubavam, trapaceavam,
traiam, se endividavam com os agiotas de plantão, faziam acordos espúrios que
sabiam impossíveis de serem cumpridos, matavam, trocavam de aliados e até
abandonavam as próprias famílias e amigos. Porém, tudo teria que ser feito de
forma que ninguém percebesse. O mais importante era parecer que o postulante ao
cargo era uma pessoa acima de qualquer suspeita, de reputação ilibada e
dedicada a alguma causa nobre.
Mestre Sist com sua onipotência
dominava todo o processo e às vezes brincava com os postulantes. Alguns
realmente eram homens e mulheres com boas intenções que tinham seus trabalhos
baseados na ética e no compromisso social. Acreditavam que tinham que fazer
parte do Conselho do Pântano Azul para melhorar a vida do seu povo. Eram
chamados de ingênuos e na maioria das vezes não tinham a menor chance na
disputa, pois eram engolidos pelos que tinham poder e capacidade de
manipulação. Porém, como um teste, o Mestre Sist manipulava e permitia que
alguns desses ingênuos se credenciassem para entrar no pântano. Falava nas entrelinhas
e de forma enigmática que o pântano precisava de algumas almas boas para manter
seu equilíbrio e satisfazer ao seu ecossistema. Um dia, quem sabe, alguma alma
boa conseguiria entrar e sair do pântano azul sem se manchar e sem perder sua
essência! Esse era um grande desafio que ainda não fora cumprido.
Assim, em um período predefinido,
acontecia a grande disputa que envolvia e mobilizava toda a cidade daquela
próspera região dos confins da terra. Era um acontecimento sem igual e a cada
período reforçava ainda mais os mistérios daquele lugar de luz azulada que
continuava cegando e atraindo as pessoas (...)
O
grande conselho do pântano azul
Mestre Sist estava eufórico. Tudo
havia transcorrido na maior regularidade e o resultado da eleição para a
escolha do Grande Conselho do Pântano Azul não poderia ter sido melhor. Ele
manipulava tudo e a todos, mas de forma inteligente para parecer que tudo era
um jogo aberto e democrático onde venceriam os melhores, os mais preparados.
Porém, apesar de manipular, Mestre Sist dava corda e deixava a disputa
transcorrer livre em certos momentos para testar o potencial dos participantes.
Assim, sempre corria o risco do resultado não sair de acordo com seus desejos.
Em algumas ocasiões isso lhe custou a escolha de um conselho totalmente
diferente do planejado, causando desequilíbrio ao pântano. Mas bastou fazer
alguns ajustes na eleição seguinte que tudo voltou ao normal.
O dia da escolha foi perfeito. O povo
já comemorava antecipadamente o resultado, como se fosse a coisa mais
importante e sagrada da vida. Era engraçado de se ver a reação da população
daquele lugar nos confins da terra: alguns choravam desesperadamente, outros
sorriam histericamente; muitos soltavam fogos de artifício e desfilavam em carros
abertos pelas ruas da cidade; outros reagiam violentamente ao resultado e até rompiam velhas amizades; algumas
igrejas faziam vigílias de orações e conclamavam os fiéis para participarem do
processo; líderes religiosos perdiam o senso de religiosidade e mergulhavam de
cabeça na escolha; as pessoas importantes da cidade, líderes comunitários,
empresários e trabalhadores se envolviam tanto que esqueciam os problemas do
cotidiano. De uma forma ou de outra, todos se envolviam, até mesmo os que
diziam que não davam a mínima às coisas do pântano azul por serem "sujas e
inescrupulosas". Certa histeria coletiva tomava conta da cidade após o
anúncio do resultado da escolha.
Mestre Sist estava feliz e radiante
com o resultado. Dessa vez confiou nos seus instintos e deixou o processo
correr solto, sem muito controle, pois sabia que a cidade estava num estágio
tão avançado que naturalmente selecionaria as cabeças mais representativas para
o seu projeto de pântano. "A alma humana já está corrompida. Os
sentimentos são pérfidos e os interesses são cada vez mais asquerosos. Dessa
vez teremos representantes à altura do pântano", divagava o Mestre,
sorridente.
Dezessete representantes da comunidade
foram os escolhidos para o Grande Conselho. Dessa vez estava muito bem
representado. Todos os sentimentos, todos os interesses, todos os sete pecados
capitais se faziam representar ali. Para garantir a continuidade do sentimento
e da filosofia do pântano, cuidava para que alguns membros anteriores
permanecessem. Assim, não haveria ruptura do sistema e os mais experientes
influenciariam os novatos. Mestre Sist sempre deixava que eles escolhessem
entre si um pequeno grupo para comandar. Ficava só observando os critérios que
os conselheiros inventavam e as estratégias que usavam para comandar o pântano.
Sentia prazer em ver como aquele grupo era tão evoluído, a ponto de trapacear e
enganar os próprios pares para sentar na "Grande Bancada".
Como já foi citado anteriormente,
Mestre Sist deixava que algumas "almas boas" fossem escolhidas para o
Grande Conselho. Ele queria testar o poder e a evolução do pântano azul. Tudo
era parte de um grande jogo, onde ninguém sabia quais seriam os vencedores e os derrotados.
Uma vez dentro, todos os artifícios seriam usados para macular e corromper
essas "boas almas". O grande desafio seria passar pelo Pântano sem se
manchar, sem enlouquecer ou sem perder a vida. Por isso, era comum ouvir frases
entre os conselheiros, do tipo, "aqui o sistema é bruto"; "se
você não se enquadrar será engolido pelo pântano"; "aqui não tem
santo"; "aqui quem é mais tolo desenha uma vaquinha na parede e tira
leite dela"; "nesse conselho os mais inocentes dão rasteira no
vento"; "ou você se enquadra ou morre"; "o povo tá pouco se
lixando para você. Então, aproveite o tempo que lhe resta aqui e faça sua
vida..."
No fundo, Mestre Sist sabia que aquele
lugar era apropriado para desnudar os mais íntimos e originais sentimentos do
ser humano. Toda a personalidade, todos os desejos inconfessáveis, todas as
luxúrias e ganâncias do ser humano apareciam de forma cristalina quando ele
mergulhava no pântano. Alguns comentavam: "fulano era gente boa e se
transformou após entrar no pântano"; “aquela era
uma mulher virtuosa e mudou do azeite para o óleo contaminado, após penetrar no
pântano"; “cicrano era um
religioso fervoroso e hoje é um ser depravado e ladrão..." Mestre Sist
apenas sorria, disfarçadamente, e pensava: "Não! Vocês é que não
conheciam seus semelhantes. O pântano azul não contamina ninguém. Apenas tem o
poder de revelar a verdadeira identidade do ser humano".
Assim, o Mestre Sist continuava
observando o desenrolar dos fatos naquele Grande Conselho composto por
dezessete membros. Tinha esperança de encontrar uma boa alma verdadeira que o
desafiasse. Quem seria o indivíduo que mergulharia no pântano azul e sairia
incólume para iniciar outro ciclo? Até
aqui, só um ser conseguiu essa façanha.
Mestre Sist aproveita a ocasião para
desejar a todos um Feliz Natal e um Novo Ano cheio de saúde e paciência para
enfrentar os desafios que o pântano azul continuará proporcionando.
PARTE IV
A relação de amor e ódio entre os conselheiros do pântano e os
aldeões
O Grande Conselho
do Pântano era composto por 17 componentes, sendo 13 cavalheiros e quatro
damas. Apesar das mulheres serem a maioria naquele distante reino, poucas se atreviam
a se aventurarem naquelas paragens. Grupos feministas pregavam que “lugar de
mulher é no Grande Conselho”, mas, na hora da escolha, poucas conseguiam atrair
a atenção dos eleitores. Porém, as que conseguiam chegar ao pântano, agiam de
tal forma que se igualavam ou até superavam os homens em todos os quesitos.
Passado
o momento de euforia da escolha, não se sabe o porquê, mas quase todos se
voltavam contra os conselheiros. Alguns se sentiam enganados, outros,
desprestigiados, outros traídos e outros ainda, com desprezo por aqueles que
tanto torceram para estar ali. Parecia uma maldição, mas quase todos na grande
aldeia passavam a hostilizar os conselheiros. “Ladrões, prostitutas, traíras,
corruptos, bandidos, vendidos”, eram os adjetivos mais carinhosos atribuídos a
eles.
Mestre Sist
observava e se divertia com a situação. Ver os conselheiros do pântano se
digladiando e sendo hostilizados pelos aldeões era música para sua alma.
Observava como esse povo que, antes, declarava amor eterno aos conselheiros,
agora tratava-os com tanto desprezo. Por um lado, os postulantes ao cargo de
conselheiro tinham que prometer tudo a esse povo, tinha que bajular, mentir e
trapacear; por outro lado, o povo seguia fielmente a esses postulantes, como
sendo líderes infalíveis e donos de todas as virtudes, mas no fundo, esperavam
dividir as vantagens prometidas do pântano. Afinal, quem enganava quem? “Pobres
conselheiros, pobres eleitores”, divagava mestre Sist enquanto acariciava sua
longa barba branca.
Durante a disputa, via-se de tudo:
desocupados aproveitavam para ganhar uma graninha para distribuir santinhos nas
ruas ou balançar bandeira nas encruzilhadas, especialistas vendiam seus dotes
para dar uma cara moderna e honesta aos postulantes, líderes vendiam seus
rebanhos com promessa de recompensa farta, executivos patrocinavam campanhas em
troca de favores posteriores, mercenários vendiam apoio por um “modesto”
pagamento, de tudo acontecia. Havia até os aproveitadores que acampavam nas
portas das casas dos postulantes para conseguirem algum bem como tijolos,
cimento, combustível, dentaduras, cestas básicas, entre outras coisas. Tudo em
nome da boa fé e da boa moral. “Uma mão lava a outra e as duas juntas
lavam a cara”, esse era o lema.
Quase todos declaravam que odiavam o
pântano azul, mas, inexplicavelmente, no período da escolha, quase todos se
envolviam apaixonadamente. Havia períodos em que a disputa era tão acirrada que
as pessoas eram tomadas por uma espécie de transe, de alucinação. Alguns sábios
falavam que era o efeito da luz azulada que emanava do pântano que deixava
todos os envolvidos alucinados e entorpecidos. Velhos amigos viravam inimigos,
e, inimigos se transformavam em aliados. Um velho filósofo definiu essa
realidade com a seguinte frase: “O pântano tem o poder de afastar os amigos
e juntar os inimigos”. Por isso, os mais cautelosos evitavam brigas
mais acirradas, pois o inimigo de hoje poderia ser útil como aliado amanhã.
Durante as
disputas para o Grande Conselho do Pântano, geralmente prevalecia a lei do vale
tudo, do mais forte. Para equilibrar essa disputa, e dar um ar de serenidade,
mestre Sist tratou de botar uma ordem aparente na bagunça. Afinal, todos tinham
que achar que era a coisa mais séria do mundo. Assim, criou mecanismos de
regulamentação para não descambar para a bagunça total. Nomeou um poder supremo
para fiscalizar os postulantes aos cargos de conselheiros e chamou-o de Dr.
Torga. Dr. Torga deveria cuidar para que tudo parecesse normal e organizado, e
tinha a ordem de vigiar de perto e, quando fosse conveniente, punir os
postulantes. Porém, deveria fazer o jogo e favorecer uns, e tirar outros da
jogada. Esse era o grande desafio que tinha que ser cumprido à risca para não
causar desequilíbrio no pântano.
Mestre Sist se surpreendia e se
orgulhava com a evolução dos postulantes. Mesmo com todo o rigor aparente que
era imposto pelo Dr. Torga, muitos conseguiam driblá-lo e criavam mecanismos
para enganá-lo. Esses, sempre conseguiam superar os limites e fazer o Dr. Torga
de bobo. “Esplêndido, genial! É disso que o pântano precisa para se
fortalecer!”, bradava Mestre Sist. “A julgar pela evolução que estamos
alcançando, em breve chegaremos ao ápice e essa espécie se extinguirá por si
só, numa espécie de antropofagismo”, filosofava o mestre.
Após o grande
desafio da escolha dos conselheiros, passada a euforia da festa, agora os
pobres mortais tinham que trabalhar, ou pelo menos demonstrar que estariam
trabalhando. Duas vezes por semana o Grande Conselho se reunia para tratar de
assuntos de interesses da aldeia. A grande sala de audiência era construída num
local estratégico, onde os visitantes não pudessem vislumbrar de fato o que se
passava no pântano. Todos podiam comparecer e participar livremente, pois, não
havia perigo de ninguém descobrir os segredos que, de fato, aconteciam ali. Os
conselheiros ficavam confinados numa espécie de redoma de vidro, de tal forma,
que não pudessem ser hostilizados ou tocados pelos participantes. Dizem até que
a redoma de vidro era para proteger os aldeões e evitar que fossem contaminados
pelos membros do pântano.
O grande
problema é que agora, após a vitória, os aldeões apresentavam as faturas aos
conselheiros do pântano, que, na maioria das vezes, eram impossíveis de serem
quitadas. Daí, a explicação para a mudança de humor repentina, para a alteração
brusca entre o amor e o ódio. Muitos argumentavam que os aldeões, no fundo
gostavam de serem enganados, e que, se o postulante ao cargo não tivesse a
capacidade para enganar, jamais alcançaria o objetivo. Por um lado, aldeões
espertos buscavam tirar vantagens pessoais à custa dos postulantes ao conselho;
por outro lado, os postulantes se aproveitavam desse espírito mercenário dos
aldeões para galgarem as melhores posições no pântano. Assim, surgiu a grande
dúvida existencial: “Quem é mais corrupto? O conselheiro ou o aldeão? Existe vítima nesse
jogo?”.
Assim, seguia a
vida no pântano, pleito após pleito. As reuniões eram tão previsíveis que
muitos aldeões nem apareciam mais. Outros marcavam presença pelo menos uma vez
por semana por acharem engraçadas. “Era um verdadeiro circo dos horrores
gratuito”, diziam alguns frequentadores.
De tudo se via naquele recinto: oradores dissimulados, simulação de brigas violentas,
brigas sem simulação, gente espumando pela boca como cachorro louco, palhaços
sem graça tentando arrancar risos da plateia, a madame louca indignada pela
redução de sua verba de maquiagem, um velho senil pregando a moralidade com os
bolsos entulhados de biscoitos roubados da merenda escolar, uma conselheira
pregando o fim do mundo e um mentecapto jurando que ouviu ordens do próprio
Deus. Havia até quem só grunhisse e, outro que só balançava a cabeça. Tinha
também um ser esquálido que quase não falava, mas de vez em quando, tentava
imitar um sábio e proferia algumas palavras que nem ele compreendia.
Assim seguia a rotina do Grande Conselho, que
de fato, parecia um circo dos horrores em uma apresentação de um espetáculo
macabro. Aqueles seres, que outrora eram normais, e, que agora, pareciam
zumbis, eram de dar pena. Todos continuavam indagando que mistério havia
naquele pântano para deixar homens e mulheres naquela situação!
FINAL
O guardião da caixa forte e o segredo da mala preta
Ao longo dos
anos, Mestre Sist cuidou para aperfeiçoar o pântano azul e atrair sempre mais
almas para o seu projeto. Era importante manter o mistério e fortalecer os
princípios regimentais que transparecesses normalidade na casa.
Além do Grande
Conselho, havia o guardião da caixa forte que tinha o poder de organizar a
aldeia e prover o desenvolvimento e o bem estar dos aldeões. Esse guardião
também era escolhido de forma direta num pleito disputadíssimo, e o cargo era
muito cobiçado por todos, pois além do poder de gerenciar a caixa forte, era
laureado com poderes supremos que lhe conferiam prestígio e riquezas
incalculáveis. Bastaria se submeter, após ser escolhido, aos ditames do mestre
e ter esperteza o suficiente para se livrar das armadilhas do Dr. Torga. Se
conseguisse, o céu seria o limite.
Cabia ao Grande
Conselho o controle e a fiscalização do guardião da caixa forte. Era tudo bem
estruturado para conferir poder aos conselheiros e não deixar o guardião pensar
que era deus. Assim, qualquer medida, qualquer decisão do guardião, teria que
ser chancelada pelo Grande Conselho. Se por um lado, o guardião da caixa forte
tinha poderes privilegiados, por outro lado, esses poderes dependiam dos
conselheiros. Essa foi uma forma inteligente que Mestre Sist criou para manter
o equilíbrio e, ao mesmo tempo, acirrar as disputas entre os poderes. Afinal,
nesse jogo, vale a criatividade para trapacear, para dominar e para subjugar os
mais fracos.
Com o poder de
controle que o Grande Conselho exercia sobre o guardião, foi enfraquecendo a
sua influência, de maneira que algumas figuras ilustres caíram em desgraça no
exercício da função. Foi então que há tempos atrás, um guardião teve a
brilhante ideia de explorar a cobiça e a ganância dos conselheiros. Passou a
fazer acordos, a oferecer privilégios e criar cargos para contemplar os
conselheiros e seus parentes. Sabendo que as mentes dos componentes do pântano
estavam corrompidas, usou e abusou desse expediente exaustivamente, até que nem
um componente soubesse mais viver sem esses favores extras. Além disso, usou de
artimanhas para dividir o grupo e provocar disputas entre eles.
Esse guardião
que teve a grande ideia de seduzir os conselheiros com privilégios extras fez
escola no pântano azul e influenciou toda uma geração, de tal forma, que até os
dias atuais esse modelo é seguido e aperfeiçoado pelos seus sucessores. Agora,
todo guardião que tem o privilégio de assumir a caixa do tesouro, cuida para
seduzir principalmente àqueles que foram seus adversários na disputa. Assim,
terá garantida toda a tranquilidade para usufruir do tesouro sem nenhum
aborrecimento. Por sua vez, os conselheiros tratam de juntarem-se em grupos
para fortalecerem-se e arrancar mais benefícios do guardião. Tudo dentro da
mais perfeita ordem e em nome da moral, dos bons costumes e, até dos princípios
religiosos, mesmo que as crianças morram à míngua, mesmo que famílias inteiras
de aldeões padeçam, mesmo que o reinado apodreça e vire ruínas. O importante é
manter o sistema em perfeita harmonia.
Um certo
guardião do tesouro que presidiu a aldeia num período crítico, inventou uma
arma secreta para acalmar os conselheiros do pântano que apresentavam
comportamento rebelde. Com o livre arbítrio que o Mestre Sist dava de vez em
quando para testar a astúcia dos postulantes, vez por outra, alguma pessoa bem
intencionada conseguia passar pelo teste e entrar no pântano azul. Diziam que
iriam mudar e transformar o pântano e mostrar que ainda havia almas boas
naquele lugar, capazes de mergulharem no pântano e saírem puras.
Para evitar
problemas de desequilíbrio, e, para continuar reinando soberano gozando de
todos os privilégios do cargo de guardião do tesouro, seus antecessores usavam
de violência, intimidação, e até assassinato contra os conselheiros e aliados
que não dançassem conforme a música. Isso custava muito caro e criava muita
desordem e complicação, chegando até a perda da função de uns. Foi então que
esse iluminado guardião teve a brilhante ideia de lançar mão de sua arma
secreta: tratava-se de uma mala preta que era levada por um emissário e aberta
exclusivamente na presença do conselheiro rebelde que estava criando problemas.
Até hoje,
ninguém de fora descobriu o misterioso conteúdo dessa mala preta, e o segredo é
passado somente de guardião para guardião. Todos os guardiões do tesouro lançam
mão desse recurso, uns mais e outros menos. Basta um conselheiro se rebelar, ou
ameaçar ruir a estrutura, logo aparece o emissor com a tal poderosa mala preta.
Dizem que o sujeito fica transtornado e entra num transe total. Alguns cheiram
o conteúdo, outros fecham os olhos e oram em agradecimento, outros choram
diante da visão. Depois da visita do emissário da mala preta, os rebeldes ficam
mansos como cordeiros e mudam radicalmente o comportamento: se antes odiavam o
guardião, agora passam a amá-lo.
Uma característica
mais comum de quem recebe a visita do emissário da mala preta, é a mudança de
vida. Como num passe de mágica, o sujeito, além de ficar dócil como um
carneirinho, muda radicalmente sua situação financeira. Dizem que é o poder da
mala secreta que abre a visão para a prosperidade. Se antes, o jetom recebido
pelo seu “suado” trabalho não dava nem para as necessidades básicas, agora,
sofre a mutação e se transforma em riqueza incalculável. É o verdadeiro milagre
da multiplicação.
Cada guardião
que entra, cria sua própria mala preta e vai aperfeiçoando para driblar a
vigilância do Dr. Torga. Apesar de ninguém saber o conteúdo da mala, ela é
proibida e mantida sob o mais absoluto segredo. Alguns curiosos chegaram perto,
mas só descobriram objetos sem sentido que cobriam o verdadeiro conteúdo.
Algumas vezes chegaram a ver carambolas, laranjas, e até roupas velhas. Outras
vezes, no lugar da mala preta, o emissário levava caixa de papelão ou sacola de
supermercado.
Com esse
moderno sistema de acalmar os rebeldes, os guardiões quase não precisam mais
lançar mão de recursos violentos. A mala preta é mais eficiente e mais barata,
além de deixar o sujeito em estado de letargia, criando uma dependência
perpétua. Uma vez tendo recebido a mala preta, nunca mais o conselheiro
seria o mesmo. Aquele espírito de
rebeldia era transformado em subserviência, e mesmo que o conselheiro fosse
rico, vivia como um mendigo, sempre rastejando sem a mínima dignidade.
Mestre Sist admirava com orgulho a sua criação. “Pobres coitados!
Quando vão evoluir a ponto de descobrir que o pântano é composto por partículas
extraídas de suas próprias fraquezas? Quando vão se darem conta de que a
ambição, o orgulho, a vaidade, o vício, a perversidade, e outras deformidades
humanas são matérias indispensáveis para a continuidade do pântano azul?”, divagava
o Mestre.
Um dia, quem sabe, uma alma pura
mergulhará no pântano e sairá limpa e incólume. Quando isso acontecer, será tão
forte que contaminará outros membros e abalará a estrutura do pântano azul.
Enquanto isso, Mestre Sist vai brincando e fazendo novas experiências com os
que penetraram nesse universo misterioso de luz azulada tão atraente e tão
complexo. Cada novo ser que entra no pântano recebe a picada do escorpião e o
beijo da borboleta, e a contradição passa a ser condição natural em sua vida.
Por um lado, sente que o veneno está destruindo suas entranhas, corroendo sua
alma, e, por outro lado, se entrega perdidamente ao jogo da luz. Perde suas asas, mas não abandona o pântano
azul.