Numa certa manhã de uma quarta feira cinzenta o jovem Ziul estava meio nostálgico e mergulhado em seus pensamentos. Naquele dia em especial estava acabrunhado e melancólico. Talvez fosse pela energia da data que sempre foi muito forte em sua vida. Tempo de quaresma que ele aprendera guardar ritualisticamente com sua família desde a infância, e aquelas coisas do tipo "quarenta dias para reflexão", quarenta dias sem cometer excessos", "jejuar toda quarta e sexta em todo o período e se abster de carne vermelha nesses dias", e outras tradições que ele seguia mais por força do hábito do que por religiosidade.
Mas o que lhe deixava inquieto não era nada ligado a religião ou ao tempo da quaresma. Uma angústia existencial inquietava-lhe a alma a ponto de lhe sufocar. Estava mesmo deprimido.
Como estava de recesso no seu trabalho, naquele dia acordou cedo mas ficou na cama sem coragem para levantar, e não era ressaca de carnaval. Enquanto olhava para o teto do seu quarto, pensou nos últimos anos de sua vida. Como um filme, foi vendo cada detalhe, cada conquista, cada decepção, cada alegria, cada tristeza. E inevitavelmente lembrou dos amigos e conhecidos que havia perdido. Alguns perdera para a morte. Alguns morreram de morte natural, outros morreram assassinados e outros por acidente. Mas a pior perda foram aquelas em que os amigos continuavam vivos. Lembrou que nos últimos anos havia perdido alguns amigos por divergência, por intolerância e até por traição. E isso lhe deixava ainda mais triste.
O jovem Ziul se sentia como um guerreiro cansado. Apesar da pouca idade, sentia como se carregasse um enorme fardo sobre suas costas. Gastou toda a sua juventude lutando por princípios que acreditava serem os mais puros e corretos. Viveu sempre lutando por uma sociedade mais ética, mais civilizada e de valores solidários. Desde a adolescência lutava por esses ideais da forma mais pura, cristalina e, até com uma certa ingenuidade. Em nome desse sonho acalentado pelos seus mestres e ídolos abriu mão de muitas coisas.
Agora se via numa encruzilhada. Apesar de jovem, já era maduro o bastante para perceber que a realidade era bem diferente do que sempre sonhara. O homem não é essencialmente bom como sempre acreditou. As pessoas de todas as classes, de todas as ideologias, de todas as matizes tinham interesses inconfessáveis. "Estaria a sociedade pervertida e sem solução?" - Pensou com um misto de decepção e desespero. Tantas pessoas ditas boas, tantos cristãos, tanta gente virtuosa demonstrando na prática que existe dois lados: o que se prega e o que se faz na realidade debaixo de sete capas, sob o manto da hipocrisia. Enquanto pensava cantarolava a música do Cazuza: "meus heróis morreram de overdose, meus inimigos estão no poder..."
Vagando em seus pensamentos, o jovem filósofo se sentiu só e chorou. Chorou sozinho em seu quarto. Um choro incontido e silencioso. Se sentia meio deslocado do mundo, como um ser de outra galáxia, muito distante do seu tempo. Seu coração palpitava de tanta angústia. Parecia que ia explodir.
Levantou-se meio tonto. Precisava respirar um ar puro. Foi até o banheiro e mirou-se no espelho. Assustou-se com sua imagem refletida. Parecia um velho. As rugas ao redor dos olhos lembravam que o tempo estava passando e que ele tinha que correr. Mas correr para onde? E agora José? Já não era tão jovem assim. "O tempo não para". "Preciso fazer algo! Não posso sucumbir dessa forma. Quem sabe tenho que mudar a direção do meu caminho?!" - pensou o jovem num lampejo de esperança.
Foi então que lembrou de um velho amigo que há muito não via. O tempo e a rotina haviam-no afastado. O velho Sócrates era daqueles gurus iluminados que inspirava confiança e segurança. Sempre nos momentos difíceis os amigos recorriam aos seus conselhos e ele estava sempre disponível com um sorriso franco. "Como não lembrei disso antes? Como fui me afastar tanto assim do meu velho mestre?" - Pensou o jovem filósofo com um leve sorriso de esperança. Tudo o que precisava naquele momento era conversar com um ser iluminado, com alguém que fosse capaz de sustentar uma conversa sincera sem banalidade e sem futilidade. Estava decidido. Foi procurar o velho amigo.
O jovem Ziul tomou um banho e resolveu ir a pés na casa do velho Sócrates. Como já não tinha mais seu numero na agenda do seu smartphone, resolveu arriscar e ir sem prévio aviso. Chegou em sua casa por volta do meio dia e quando percebeu a hora ficou envergonhado. Este, parece que já estava esperando-o. Correu em sua direção de braços abertos e deu-lhe um forte abraço.
- Que bons ventos o traz aqui? - Perguntou sorridente o velho Sócrates.
- Estava passando por aqui e resolvi encostar. - Respondeu Ziul meio encabulado. - Mas acho que cheguei em mal hora. Nem percebi que já era meio dia.
- Que bobagem. Eu acordei agora. Sabe como é né? Mesmo depois de velho não perdi a mania de gostar da folia do Rei Momo. Falou dando uma piscadela e puxando o jovem Ziul pelo braço em direção a cozinha. - Me conte, como estão as coisas? Sente-se aqui enquanto eu preparo um café. Você ainda aprecia um bom café não é? - Perguntou sorrindo.
-Claro meu amigo. Vamos tomar um café e conversar. Preciso muito conversar com esse velho amigo. - Falou Ziul mais a vontade.
O velho Sócrates já com seus setenta anos era uma espécie de guru, de anjo e protetor. Sua mente estava sempre a mil e mesmo sendo de uma geração mais antiga, estava sempre atualizado e cheio de novidades. Conversar com ele era sempre um alento, uma alegria, uma banho de cultura, uma aula de civilização que só os mais privilegiados podiam desfrutar. Sem preconceitos, sem dogmas e sem frescura, estava sempre disposto a ouvir a qualquer um e a qualquer hora. Não havia um ser nessa terra capaz de sair de uma conversa com esse velho sábio sem alterar seus conceitos, seus pontos de vistas. Vivia só, mas por conveniência. Quando sua esposa faleceu os filhos já estavam adultos e preferiu não constituir outra família. Diziam as más línguas que o único defeito do velho Sócrates era amar várias mulheres ao mesmo tempo, por isso, não quis mais se apegar a uma só. Sua casa era como um templo da sabedoria onde as portas estavam sempre abertas para uma conversa e para uma rodada de viola. Assim era o velho Sócrates.
O que era para ser um café se estendeu para um lauto almoço que os dois prepararam. Na mesa as 15 horas degustaram uma caldeirada de tucunaré com tucupi e jambu, regada a um vinho tinto. Essa era uma estratégia de Sócrates. Tinha o dom de perceber quando alguém estava com um problema e envolvia-o com conversa frugal antes de deixá-lo tratar do problema propriamente dito. Dizia que era uma espécie de maturação do espírito. "Antes de tratar um problema, é melhor esquecer dele para não deixar as emoções embaçar a razão", dizia o velho sábio.
- Então meu amigo Sócrates, menti para você quando cheguei aqui. Na verdade hoje amanheci sufocado, com vontade de morrer, meio bronqueado com o mundo. Então resolvi procurar o amigo para conversar e não estava passando por acaso como falei antes. - Confessou Ziul mais animado.
- Eu sei meu amigo. Percebi logo que o avistei. Senti sua áurea cinzenta e um peso enorme sobre sua cabeça. -Respondeu Sócrates com um sorriso brilhante.
- Pois é. Nem foi preciso falar dos meus problemas. Esse nosso bate-papo, esse ritual de preparar o peixe me deixou completamente curado de minhas feridas que trazia na alma. Você é mesmo um velho bruxo. - Disse Ziul apertando o ombro esquerdo de Sócrates.
Sócrates deu uma estridente gargalhada e se levantou puxando o amigo pelo braço.
- Vamos caminhar um pouco para fazer a digestão. Hoje vou quebrar a rotina e não vou dormir após o almoço. O amigo ficou muito tempo sem me ver e sabe como sinto sua falta. Você é como um filho rebelde, é meu discípulo mais querido. - Falou enquanto trancava a porta da frente. - Mesmo não tendo te visto e não tendo conversado com você nos últimos tempos, tenho acompanhado sua luta e sei das suas dúvidas. - Falou segurando no braço de Ziul.
- Pois é mestre. Estou meio confuso. As vezes sinto que estou sozinho no mundo, mesmo estando rodeado por multidões. - Desabafou o jovem.
- Sei como é isso meu filho. As vezes me sinto assim também. Na verdade, pessoas como nós estão de fato sozinhas no meio da multidão. Essa geração de hoje tem valores muito diferentes dos nossos, tem idéias distorcidas da realidade, tem interesses difusos do que realmente importa. Por isso nos sentimos assim, isolados, meio esquisitos.
- Parece que o mestre está lendo meus pensamentos. Era exatamente assim que eu me sentia quando acordei hoje de manhã. Vejo a sociedade se deteriorando, vejo pessoas ditas inteligentes praticando todo tipo de insanidade e as vezes me pergunto se não sou eu que estou ficando louco. - Desabafou Ziul.
- Não. Não estamos ficando loucos. O nosso erro foi nascer com um senso crítico mais apurado do que o da grande maioria. Nosso pecado é ter a capacidade de adquirir conhecimentos que a grande maioria nem imagina, de saber filtrar informação, de desvendar a realidade de forma lógica. Conhecimento demais dói meu filho. Você não se lembra daquela música do Maluco Beleza? Como era mesmo? - Perguntou Sócrates sorrindo.
"É pena não ser burro, não sofria tanto" (Só pra variar - Raul Seixas). Os dois saíram cantando um trecho da música em voz alta sob os olhares espantados dos transeuntes.
- Então me diga mestre. O que fazer? Sinto que estou perdendo amigos. A cada dia me sinto mais só. Mesmo que me esforce não consigo conviver com tanta ignorância, com tanta hipocrisia, com tanta futilidade. Quando olho o que se publicam por aí nas redes sociais então! Dá vontade de vomitar. As pessoas estão perdendo o senso do ridículo.
- Eis a questão meu jovem brilhante filósofo. Você é um ser iluminado e não escolheu ser assim. Apenas é e pronto. Mas pense no lado bom da coisa. Pense que você é um rei com dois olhos em terra de cego. - Respondeu Sócrates sorrindo.
- Mas do que me vale ter dois olhos em terra de cegos e se sentir só, isolado e até discriminado? - Indagou Ziul meio confuso.
- Aprenda a usar mais seus dois olhos meu filho. Use principalmente o olho interior. Aprenda a viver nessa sociedade. Não tente mudá-la a qualquer custo. Tudo acontecerá ao seu tempo. O lado bom de envelhecermos é que vamos aprendendo a exercitar a tolerância, a paciência e a compaixão. Não se angustie tanto assim. Não precisa se rebaixar para se igualar aos infelizes mortais, mas aprenda a se adaptar.
- Mas como poderei me adaptar mestre? Terei que me fingir de néscio? - Indagou Ziul com os olhos arregalados.
Nesse momento o sol já estava se pondo e os dois caminhavam as margens de uma lagoa que ficava na saída leste da cidade.
- Vamos parar um pouco aqui. Observe o Sol. O que está vendo? - Perguntou Sócrates.
- Vejo que ele está se pondo. Parece que está mergulhando no lago.
- Aí é que está o "xis" da questão. O sol não está se pondo. A Terra é quem está girando ao redor do Sol que continua no seu lugar há bilhões, há trilhões de anos. - Respondeu Sócrates com um sorriso enigmático.
- Desculpe minha ignorância mestre. Sei que a Terra gira em torno do Sol. Apenas dei uma resposta no senso comum. Mas não sei onde você quer chegar.
- Eis a questão. Você sabe que o Sol está lá e que a Terra gira. Mas não ficou mais poético e bonito dizer que o Sol está mergulhando na lagoa? Assim é nossa sociedade. Ela é composta por gente comum, com pouco conhecimento. Se você sai por aí falando da teoria heliocêntrica a cada pôr do Sol, vão te chamar de louco, de chato. - Disse Sócrates com um leve sorriso.
- Bingo! Acho que entendi onde quer chegar.
- É claro que entendeu meu jovem filósofo. Não temos que aceitar a hipocrisia, o preconceito, a banalização das idéias, a intolerância religiosa, o preconceito racial, o machismo e outras abominações da espécie humana. Mas temos que saber que isso existe em nossa sociedade e temos que aprender a conviver com isso. Veja bem: eu disse aprender a conviver, e não aceitar. - Alertou o iluminado mestre.
- Mas mestre, isso não é contraditório? Quando fui seu aluno não era você que nos ensinava a lutar contra tudo isso?
- Sim. Lembro-me muito bem. Mas temos que lutar com as armas certas e no tempo certo. Não podemos esperar que essa geração vazia tenha a mesma capacidade de compreensão que nós temos. Lembre-se de que como disse bem Jesus Cristo, essa sociedade está cheia de hipócritas que gostam de aparecer nas esquinas, de ocupar os primeiros lugares, de dar esmolas em público e propagandear a falsa caridade. Lembre-se das pessoas que são como sepulcro caiados: por fora está tudo bem, mas por dentro estão podres. E geralmente essas pessoas tem muito mais capacidade de influenciar e convencer os outros do que você que é um sábio limpo. E não adianta querer mudar isso da noite para o dia, pois Jesus veio ao mundo para nos alertar e nos preparar e deu no que deu. Jesus provocou uma mudança profunda na humanidade mas não mudou a todos e não mudou de repente. Até hoje esse processo continua e de forma lenta e gradual. Portanto meu filho, não sofra. Aprenda ser tolerante e paciente. Se for preciso, se misture as ovelhas, se iguale a elas para não ser excluído. Se finja de morto para papar o defunto. - Disse soltando uma gargalhada.
O jovem Ziul baixou a cabeça e ficou por um instante refletindo. Sócrates se afastou um pouco e ficou agachado jogando pedrinhas no lago e observando os transeuntes. Ziul se aproximou e disse:
- Daqui para frente não vou ficar mais tanto tempo sem te ver. Essa tarde valeu por meus últimos dez anos de aprendizagem mestre. - Falou dando-lhe um longo abraço.
- Quando quiser estarei a sua disposição meu filho. O prazer foi todo meu e lembre-se que você sempre foi meu aluno preferido, o mais brilhante de todos. E, só mais uma coisa: "não jogue pérolas aos porcos". Dê seus ensinamentos a quem realmente precise e procure. Não adianta querer fazer um cego ver a luz e não adianta tentar convencer os ignorantes. Quando estiver num debate, use apenas a razão e quando alguém começar a usar a emoção ou argumentos vazios, sacuda as sandálias e saia dali. Não lance suas sementes em terrenos pedregosos ou arenosos.
- Acho que já ouvi isso em algum lugar. - Respondeu Ziul com um sorriso enquanto se despedia do mestre Sócrates com um afetuoso abraço e, de longe gritou: - Ah, mestre, aquela sua frase que falou na nossa formatura está anotada no meu caderno e agora mais do que nunca compreendo o seu significado.
"Eleve sua luz e deixe que os puros se iluminem e os tolos se ofusquem e se ceguem".
Luiz, seu monstro, dessa vez você se superou. Estou aqui chorando rios. Só uma dúvida: nesse conto você é Ziul, Sócrates ou os dois? Lembro bem dos seus ensinamentos no magistério. (Sabe quem eu sou? Lembra da chorona?)
ResponderExcluirLuiz, seu monstro, dessa vez você se superou. Estou aqui chorando rios. Só uma dúvida: nesse conto você é Ziul, Sócrates ou os dois? Lembro bem dos seus ensinamentos no magistério. (Sabe quem eu sou? Lembra da chorona?)
ResponderExcluirÉ Luis, você nos motiva a viver. Várias vezes cheguei a tristeza de Ziul... aprender a ser tolerante tudo bem. Agora companheiro se misturar a ovelhas, se igualar a elas para não ser excluído é uma atitude situacional covarde no entanto necessária no mundo da sobrevivência. Cristo mostra na sua humildade que essa sociedade está cheia de hipócritas que gostam de aparecer nas esquinas, de ocupar os primeiros lugares, de dar esmolas em público e propagandear a falsa caridade, e pior esses hipócritas estão nos melhores cargos porque os colocamos lá. Não tenho dúvida de que essas pessoas são como sepulcro caiados: por fora está tudo bem, mas por dentro estão podres.
ResponderExcluirIsnpirado hem Luis Vieira. Quando sai o livro do Blog?
ResponderExcluirBom texto, boa reflexão, oportuno utilizar Sócrates em convivência com o jovem do Séc. XXI, mais oportunos ainda são os conselhos. Sem dúvida este texto vai estar no livro. Parabéns.
ResponderExcluirAgora algumas questões:
- O "olho interno" não seria o terceiro olho?
- "Essa sociedade" (na qual vivemos e com a qual convivemos) seria a "terra de cegos" - com alguns espertalhões de um olho só, mas bem aberto, os "sepulcros caiados"?
- O "lago" em questão seria aquele lago (cujo nome me falha a memória - azul, talvez)?
Ah, utilizar uma personagem/personalidade do passado num contexto atual, tem um termo específico, que me esqueci, mas vou pesquisar com "os universitários".
Este "Ziul" é o bicho!!! Você tem de apresentá-lo a mim. Caracas!! Vou convidá-lo para falar sobre isto numa rodada de vinho e queijo. Uma coisa sei que ele pratica: a boa convivência. Conviver não é aparecer, querer ser o melhor, mostrar mais conhecimento. Conviver é aceitar o outro como ele é, é saber reconhecer quem tem o mesmo potencial para debater com você!
ResponderExcluir"Ela é composta por gente comum, com pouco conhecimento. Se você sai por aí falando da teoria heliocêntrica a cada pôr do Sol, vão te chamar de louco, de chato."
E é isto mesmo!
Parabéns! Texto para poucos, infelizmente. Para raros...
Alípio