Comadre Tercilia -como era carinhosamente chamada pelas
inúmeras parturientes -nunca cobrou para
fazer um parto. Dizia ser um dom que havia recebido de Deus e herdado de sua
mãe, que por sua vez herdara de sua avó materna. Naquele tórrido sertão
esquecido na região Sul da Bahia as parteiras eram as únicas opções de se
trazer um bebê ao mundo. Isso quando chegava a tempo, pois inúmeras vezes as
dificuldades de acesso impedia o trabalho da parteira e quando chegava ao local
a mãe já havia parido sozinha.
Com sua voz mansa, seu
riso frouxo, suas mãos gorduchas, comadre Tercilia desenvolvia o ofício de
parteira como se fosse um sacerdócio. Já perdera a conta de quantas crianças
fez vir ao mundo e tinha a fama de pé quente, pois os casos de natimortos eram
raros no seu currículo. Mesmo assim, lembrava de cada um, e quando contava a
alguém, seus olhos lacrimejavam. Bebê atravessado, criança com cordão umbilical
enrolado no pescoço, mãe de primeira viagem com “quebranto”, qualquer problema
comadre Tercilia tirava de letra. Sua fama corria longe e aumentava a lista de
comadres que desejavam sua presença na hora que rompia a bolsa uterina.
Naquela noite de 12 de dezembro de 1967, uma terça-feira de
muito calor, seria apenas mais um trabalho de rotina para comadre Tercilia.
Nada de novidade. Só mais uma mãe veterana que esperava o seu 9º filho e se
tratava de uma boa parideira. Portanto, nenhuma anormalidade era esperada. Como
de costume, comadre Tercilia tomou um trago do “mijo” –uma mistura de cachaça
temperada com raízes, ervas e folhas de plantas utilizadas para chás que não
podia faltar nas casas das paridas- e iniciou “os trabalhos”. Colocou uma panela
de água para ferver no fogão a lenha e esterilizou a velha tesoura e duas
toalhas de algodão. Tirou de sua sacola um rolo de gaze, água benta, um terço e
vários vidros contendo remédios caseiros que ela chamava de milagrosos. Ordenou
ao marido da parturiente que colhesse no quintal folhas de mastruz, folhas de
algodão e manjericão para o emplastro do umbigo na hora do corte. Mandou
providenciar também óleo de copaíba, cânfora, além de fumo de rolo macerado no
álcool. Tudo transcorria normalmente naquela pequena casa de taipa coberta com
telhas de madeira comumente chamada de “tabuinha”.
Durante o preparo comadre Tercilia conversava animadamente
com a parturiente para deixá-la calma. Ela por sua vez, agia como se tivesse
numa proza normal e não demonstrava nem uma preocupação. A bolsa havia
estourado por volta das 18 horas e o bebê era esperado para depois da meia
noite, já no dia 13 de dezembro.
-O que vai ser dessa vez comadre? –Perguntou comadre Tercilia
apalpando a barriga da mãe.
-Será menina comadre e vai se chamar Luzia em homenagem a
Santa protetora dos olhos. –Respondeu
convicta a mãe que já tinha quatro filhos homens e apenas duas mulheres vivas,
já que duas morreram ainda bebês.
-Verdade comadre. Vai nascer bem no dia de Santa Luzia.
Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!
-Para sempre seja louvado! –Respondeu a mãe apertando o
travesseiro que tinha sobre o colo.
-Sei não comadre. Essa barriga tá muito pontuda. Acho que tem
um macho aí –profetizou comadre Tercilia apalpando a barriga da mãe com força.
De repente um suspiro longo e um gemido. Comadre Tercilia com
sua experiência deu uma gargalhada aguda e ordenou que sua parturiente fosse
para a cama. Pelo jeito o rebento não queria esperar para nascer no dia de
Santa Luzia. Mandou que todos saíssem do quarto, pois era chegada a hora.
Segurou as mãos da mãe e rezaram juntas uma Ave-Maria e um Salve Rainha. Mais
um longo gemido, um suspiro profundo e respiração ofegante. “Força Comadre.
Tenha fé no Misericordioso e na Virgem. Nossa Senhora do Bom Parto está
conosco. Respire fundo e faça força que a criança vai sair”, falava calmamente
enquanto embebia uma toalha na bacia com água quente.
Às 22 horas comadre Tercilia segurou a criança no colo e se
virou rapidamente para fora do campo de visão da mãe. Ordenou em tom severo que
descansasse e não se virasse até ela
mandar. Enrolou aquele corpinho franzino
ensanguentado e sem vida num lençol e colocou debaixo da cama. Assim, evitaria
que a mãe o visse naquele estado e viesse a quebrar o resguardo, situação que a
velha parteira evitava a qualquer custo. "Perder uma criança ainda vai, agora
perder a mãe eu não suportaria", pensou a parteira.
Passado esse momento de tristeza, comadre Tercilia enxugou as
lágrimas, se recompôs, fez o sinal da cruz, beijou o seu terço bento que trazia
sempre à mão esquerda e voltou para os cuidados da mãe aparentando normalidade.
-É menino ou menina comadre? –Perguntou a mãe ansiosa e com
voz cansada.
-É anjo comadre. É um belo anjinho macho. –Respondeu a
parteira acariciando os cabelos da mãe da pobre criança.
-Melhor assim comadre. Deus sabe o que faz. Já tenho muitos
filhos homens. –Falou a mãe conformada.
Enquanto a comadre Tercilia terminava os procedimentos de
assepsia da mãe, ouviu-se um som como se fosse um miado de gato distante. O som
foi ficando mais intenso e contínuo. A mãe perguntou se havia algum gato no
quarto. A velha parteira instintivamente olhou debaixo da cama e não acreditou
no que os seus ouvidos ouviam e seus olhos viam. A criança que há pouco era dada como morta, como por milagre se mexia dentro do lençol e chorava buscando
desesperadamente o ar com seus pulmõezinhos frágeis. Comadre Tercilia
desembrulhou aquele frágil bebê e gritou emocionada: “Deus seja louvado
comadre. O neném está vivo”. Colocou aquele frágil bebê no colo da mãe para
absorver o calor materno. A mãe olhou a criaturinha com ternura e exclamou: “Deus
seja louvado comadre! Por Sua vontade não é Luzia. Será José Luiz Barbosa
Vieira”.
Parabens Luiz por mais esta data importante. Esta historia de como vc veio ao mundo é mais um de seus contos? conhecendo sua capacidade de transformar o que parece ser corriqueiro em algo que faz o leitor viajar, me trouxe aqui esta duvida?
ResponderExcluirObrigado amigo Antonino. A História apesar de parecer um "conto" é real tal e qual. Qualquer dia pergunte a Dona Cota (minha matriarca) que ela vai te contar com mais riqueza e detalhes.
ExcluirConheço essa história; mas já ouvi também a mesma mãe dizer em outras ocasiões: "antes a morte do que a má sorte". Parabéns doutor.
ResponderExcluirZelão.
Caiu uma lágrima aqui. Parabéns pelo seu dia e pela capacidade de encantar as pessoas com as suas histórias.
ResponderExcluirLinda e emocionante história! Parabéns primo!!!!
ResponderExcluirAdorei a história,parabéns aos seus pais por trazer ao mundo um ser especial....
ResponderExcluirLuis, só agora li seu texto. Agora compreendi de onde vem tanta energia boa. Tava na cara que você não é igual aos mortais. Alguma coisa não batia, agora tá explicado. Fiquei emocionada e me arrepiei toda. Já li umas vinte vezes e a cada vez me emociono. Além de especial você é um grande escritor. Parabéns MENINO ANJO. (Não posso me identificar).
ResponderExcluirCara! Que história, hein? E só agora você divide? Quantas pérolas iguais a esta você guarda? Excelente texto e um final surpreendente: José Luiz! Parabéns!
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